segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

In dubio, pro reu

Algum tempo atrás um dos homens mais procurados do Brasil foi preso. O promotor Igor Ferreira da Silva, que há nove anos vivia na condição de fugitivo, foi preso em São Paulo. Cansado de viver nas sombras, o ex-promotor se entregou à polícia. E virou manchete. Naquela semana, fui designado, pela minha chefia, para fazer a reportagem. Até então, jamais tinha me aprofundado neste caso. O que sabia era o que todos sabiam: da versão publicada pela imprensa. De que ele era acusado de ter executado a esposa, Patrícia Aggio Longo, com dois tiros à queima-roupa. Que Patrícia, na época, estava grávida de sete meses. Que um exame de DNA revelou que o filho que ela esperava não era dele. Que as balas que mataram Patrícia tinham sido disparadas por uma arma que ele tinha registrado. E que Igor tinha fugido antes do julgamento e, por isso, condenado à revelia. Ou seja, parecia não haver nenhuma dúvida da culpa do promotor. Aceitei, como todos, o quadro que pintaram. Igor era mesmo um assassino frio. Um monstro. Um psicopata. E mantive esta convicção até o momento em que entrevistei a família de Patrícia Longo. É dificil traduzir aqui a conversa que tive com eles. Foi emocionante e franca. A mãe de Patrícia ainda se comove quando lembra da última vez que esteve com a filha. Foi na mesma noite do assassinato. Horas antes. E diz que raras vezes viu Patrícia tão feliz. "Eles estavam felizes, fazendo planos para o bebê que iria chegar, se amavam profundamente. E Igor nunca, em momento algum, magoou Patrícia. Pelo contrario, sempre a tratou com carinho e respeito", diz a mãe. O irmão e a irmã tambem listam dezenas de motivos para não acreditar na culpa de Igor. Assim como a mãe, se baseiam naquilo que vivenciaram durante anos: no amor que unia o casal. Mas a convicção da família de Patrícia não se ampara somente na intuição. Para limpar a memória de Patrícia, manchada por um laudo de DNA, eles entraram em contato com alguns dos melhores especialistas brasileiros no assunto. Que prontamente desqualificaram o laudo emitido pela USP. "Imprestável do ponto de vista técnico"; "Contaminado por manipulação indevida"; "Preparado por profissional não qualificado", foram algumas das conclusões mais brandas dos especialistas. O laudo caiu por terra. E, com ele, caiu também a única motivação possível para o crime. Todas as outras 'evidências' são contestáveis. A arma do crime jamais foi encontrada. As balas podem ter sido 'plantadas'. E a fuga, no final das contas, é compreensível. Sendo inocente, quem aceita passivamente uma condenação ? Atenção, cara-pálida!! Não estou dizendo aqui que Igor não matou Patrícia. O que estou querendo dizer é que não tenho mais a convicção que tinha antes, de que ele é um monstro, psicopata e assassino. E acho até que ele não será julgado novamente. Primeiro, porque é interessante, para a polícia, ter um caso de grande repercussão resolvido. E no tribunal, o testemunho da família de Patrícia certamente vai encher de dúvidas a cabeça de qualquer jurado. E no júri ainda impera uma norma escrita pelos romanos: in dubio, pro reu (em dúvida, a favor do réu). São muitas perguntas sem respostas. Por isso este caso me inquieta. Fico sempre me perguntando se, afinal, uma grande e terrível injustiça não está sendo cometida.



Para acessar a reportagem, clique no link abaixo.
http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/imagens-mostram-ex-promotor-igor-ferreira-agitado-logo-apos-a-prisao-20091025.html

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sempre amado

Rumo à última fronteira do Brasil, deixo, aos amigos de bar, o ritmo que embala milhões de corações.
Qualquer dia a gente fala mais sobre isso.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O Colecionador

Sempre soube que existem bilionários excêntricos. Que gostam de colecionar carros, iates, mulheres. Mas nenhum é páreo para o Sheikh Faisal bin Qassim Al Thani, um dos homens mais ricos do Qatar. E, por tabela, um dos mais ricos do mundo. O Sheikh Faisal pertence à família Al Thani, que manda no Qatar e é simplesmente dona da terceira maior reserva de petróleo que existe no planeta. Quando, anos atrás, o barril de petróleo patinava entre 8 e 12 dólares, a família Al Thani já era muito feliz. Imagine hoje. E sabe o que o Sheikh Faisal mais gosta de fazer com parte do dinheiro que tem ? Colecionar. Parece que desde criança ele já tinha esta mania. Mas aí ele foi crescendo, o preço do petróleo foi aumentando, os dólares começaram a dar em árvores e ele pensou: vou aumentar minhas coleções!! Dia desses viajei ao Qatar para cobrir uma conferência sobre educação. E descobrir outras pautas pelo caminho. No último dia tive acesso ao palácio do Sheikh Faisal. Um feito, porque jamais uma equipe de tv da América Latina tinha entrado na residência do homem. O palácio foi especialmente construído, em 1992, para abrigar as coleções do maior colecionador do mundo. É isso mesmo! Ninguém neste mundo tem uma coleção tão grande e diversa como o Sheikh das Arábias. O palácio é todo feito de pedras e tem o formato de um castelo. Ou uma fortaleza, já que abriga tesouros inimagináveis. No total, são 20 mil peças. A maioria absoluta é relacionada com a história do oriente. A primeira sala que vimos foi a das armas. Todas ficam dentro de armários de vidro climatizados, para evitar fungos. São espadas, adagas, espingardas, floretes, enfim, um arsenal histórico de valor incalculável. Em um canto, uma armadura que pertenceu a Saladino, o maior conquistador do Oriente. Em outro, uma espada com cabo de marfim e a lâmina adornada com ouro e prata. Mais alguns passos e estamos diante de armas usadas pelos guerreiros mongóis de Gengis Khan. Em outro armário, uma espada usada na Índia para decapitar os inimigos. Ao lado de outra, tambem indiana, usada para cortar as mãos dos ladrões.  Dali passamos para a ala das vestes. Um passeio pela história de cada país do oriente. Roupas usadas por reis, rainhas, sheikhs e soberanos de todos os naipes. Não me lembro de ter visto nenhuma que não tivesse algum adorno de ouro, prata ou diamante. Para realçar as roupas, a maior parte foi vestida em manequins. Um deles, feminino, usa um véu cobrindo o rosto. Detalhe: o véu é todinho de ouro (primeira foto). Uma sombrinha indiana, do tamanho de um guarda-sol, também brilha em dourado por causa da decoração cheia de brilhantes e ouro. O Sheikh tem também uma coleção com 200 carros antigos. Inclusive o primeiro carro fabricado no mundo (foto abaixo). Os carros ficam na mesma ala que abriga uma coleção de barcos e navios que, séculos atrás, singraram os mares do oriente. A coleção de motos antigas é mais 'modesta'. São 15 motocicletas. A 'estrela' é a moto que foi usada por Peter O'Toole nas gravações de Lawrence da Arábia. O Sheikh Faisal coleciona ainda fósseis. Vimos uma cabeça imensa de dinossauro, ao lado de 4 ovos (de dinossauro, off course), datados de 100 milhões de anos. Além de papiros, livros antigos (tem o menor e o maior alcorão do mundo), jóias, tapetes (persas, iranianos, chineses), pérolas, enfim, o homem coleciona tudo que o dinheiro pode comprar. Ele é dono da maior pérola já pescada no Qatar. Do tamanho de uma bola de bilhar (foto abaixo) .Para guardar a preciosidade, ele mandou fazer uma ostra de ouro maciço! Dificil saber o que vale mais. E é uma coleção particular mesmo! O museu não é aberto à visitação pública. Percorremos o palácio durante 3 horas e ainda ficou faltando muita coisa para ser vista e mostrada.

Para assistir a reportagem, basta clicar abaixo:



E este post faço questão de assinar. Em árabe, off course. Desculpa aí.

Ass:  راؤل أنتوني ديس فيله

 

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Iemen - O Mundo Proibido - Parte III

Bastaram dois dias em Sanaa para esquecer todos os alertas sobre perigos no Iêmen. Andamos por vários lugares na cidade e só me lembro de um episódio esquisito. Estávamos gravando em um mercado onde se vendem folhas de kat (um vegetal que os iemenitas mascam e ficam letárgicos durante boa parte do dia) quando, de repente, nosso guia apareceu e literalmente nos arrastou para fora, praticamente correndo. Pedimos explicações mas ele jamais nos contou o que houve. Só sei que o sujeito estava apavorado. E estava visivelmente nervoso também no dia que saímos em direção a Marib, a cidade onde, meses atrás, oito turistas espanhóis tinham sido mortos num atentado com explosivos. Achei um exagero quando ele nos disse que seríamos escoltados durante todo o percurso. E também durante todo o tempo em que estívessemos na cidade.Uma escolta só para nós, dois jornalistas disfarçados de turitas! Me senti uma celebridade! Mas comecei a ficar realmente assustado quando vi o que era a escolta. Dois jipes com vários soldados muito bem armados e um outro carro com um canhão anti-aéreo. Não sei o que era mais assustador: a arma ou o cara que a manejava. No começo, os soldados foram gentis, mas quando comecei a gravar uma passagem (quando o repórter aparece falando) eles mudaram radicalmente. Não demorou para um oficial vir até nós e perguntar se eu era repórter de alguma tv estrangeira. Dissemos que não, que aquilo era para arquivo de viagem, que a gente fazia aquilo em todos os países. Ele pediu para ver as imagens e Henry, nosso repórter/produtor/cinegrafista, mostrou tudo. O que eu não sabia é que Henry, espertamente, já tinha trocado as fitas e estava mostrando só uma poucas imagens que havia feito segundos antes. Escapamos por pouco. Durante a viagem não fizemos mais nenhuma imagem. Quando chegamos a Marib a escolta foi reforçada por mais dois veículos de policiais de própria cidade. Se perderam a conta, vou relembrar. Eram dois jipes, mais um com canhão anti-aéreo e agora tinha mais dois! E esta escolta toda para dois ilustres desconhecidos brasileiros!!! Em vez de celebridade, agora me sentia um alvo ambulante. E os olhares de ódio que a gente capturava pelo caminho só reforçavam isso. Nosso 'discreto' comboio seguiu direto para as ruínas da cidade antiga de Marib, que viveu seu apogeu no ano 1000 AC. A Marib antiga fica no alto de um monte, como convinha à uma cidade construída para servir de fortaleza. Marib era rota obrigatória para as caravanas que vinham de todo o oriente atrás das riquezas do Iêmen, principalmente mirra, incenso e mel. Dali fomos para o templo da Rainha de Sabah. Estranho, né, mas o Iêmen, país ultra-machista, foi governado por uma mulher. Bilquis, a rainha de Sabah, é citada no Velho Testamento. Ela teria tido um encontro com o rei Salomão, cujos súditos ficaram espantados com o imenso tesouro transportado pela caravana da rainha. E também com a beleza estonteante de Bilquis. Se bem que aí, olha, sei não. Todas as mulheres da antiguidade são descritas como maravilhosas. Cleópatra, Nefertiti, Bilquis, todas beldades! Será possível que não tiveram nenhuma Carlota Joaquina ? Bão, mas vamos lá. O templo da Rainha de Sabah ainda está sendo escavado. Sete grandes colunas já estão visíveis e a escavação continua. Aliás, os tesouros arqueológicos do Iêmen estão por toda parte. E muitos são saqueados a luz do dia. Não foram poucos os vendedores ambulantes que vieram nos oferecer esculturas, pedras trabalhadas, brincos, pulseiras e colares antigos. Devo dizer que, embora tentado pela beleza das peças, não colaborei com o mercado negro da arqueologia iemenita. Já bastava o medo de ser preso por espionagem! Já era fim de tarde quando nosso inacreditável comboio militar cruzou a nova Marib, rumo ao hotel. Aliás, também uma fortaleza. O prédio antigo fica fora da zona residencial da cidade. Antes de chegar aos muros altos, passamos, em zigue-zague, por vários blocos imensos de concreto. Perguntei porque estavam ali e o guia explicou que era para impedir a passagem de possíveis carros ou caminhões-bomba. Antes não tivesse perguntado. Por precaução, antecipamos a saída. E deixamos o hotel de madrugada, em duas caminhonetes, na companhia de dois beduínos muito bem armados. O sol ainda não havia nascido quando começamos a travessia de duzentos quilômetros pelo deserto da Arábia

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Iemen - O Mundo Proibido - Parte II

Sanaa, a capital do Iêmen, parece uma cidade de brinquedo. Daqueles brinquedos antigos de montar, feitos com  pequenos blocos de madeira que, colocados uns sobre os outros, se transformavam em casas e prédios. Esta foi a primeira impressão que tive ao ver de perto as construções em pedra que datam do século IV, na parte antiga da cidade. Os casarões, repletos de vitrais, ocupam uma área enorme. São cerca de 3 mil construções. Pena que a maioria já tem antenas de televisão no teto. Mas basta caminhar pelas vielas entre os prédios para fazer uma viagem sem escalas ao passado. Uma construção me impressionou muito: um castelo, que no passado foi residência de um sultão, construído em cima de uma rocha imensa. Forma indelével de se defender do ataque de tropas inimigas. Mais impressionante ainda é a maneira de se chegar ao castelo. Túneis foram construídos dentro da rocha, e hoje servem de passagem para quem quer conhecer o mausoléu por dentro. Nas ruas, também calçadas com pedras, encontramos ocasionalmente um ou outro morador. E algumas mulheres, todas vestidas com o baltho, uma túnica preta que as cobre da cabeça aos pés. Ao passar por nós, elas abaixam ligeiramente a cabeça, como se pudessem se esconder ainda mais. Regras de conduta de um país, e de uma religião, especialmente rigorosos com as mulheres (assuntos que serão abordados num próximo post). No Suq, mercado velho, é que Sanaa se revela. Tenho comigo que os mercados são os melhores lugares para se conhecer os costumes e tradições de um povo. E o mercado de Sanaa permite muito mais do que isso. Todas as cores, sabores e odores do oriente estão aqui. Ao alcance de todos os sentidos.Você vê, cheira, sente, se embriaga diante de tantas oportunidades. E tudo a granel! Pimentas, grãos, frutas, folhas.. você olha, avalia, pesa e leva pra casa. Os vendedores são extremamente simpáticos. De um, ganhei um pedaço de uma fruta bem brasileira: melancia. Algumas centenas de metros adiante encontramos o mercado das roupas. Predominam as grandes túnicas, lenços e véus coloridos. Um detalhe me chamou atenção. Numa loja estavam expostas vestidos coloridos, muito bonitos. Fiquei imaginando quem iria comprar, já que as iemenitas são obrigadas a usar o baltho. Mistério! Existem tambem muitas lojas onde são vendidas as jâmbias, aquelas adagas com uma curva na ponta. Todos os iemenitas usam uma!! Mais do que uma arma, a jâmbia (fala-se 'diâmbia') é considerada, no Iêmen, um símbolo de masculinidade. Até as crianças carregam uma na cintura. Os cintos de couro que as prendem na cintura são verdadeiras obras de arte. E a adaga, na verdade, não pode mesmo ser considerada uma arma. A lâmina é de lata. Mas o cabo, todo trabalhado, é de marfim. E custam pouquíssimo. Para fazer a matéria, comprei um cinto e uma adaga. Me lembro de ter pago algo em torno de vinte reais pelo conjunto! Me arrependo muito por não ter comprado um livro do alcorão, a bíblia dos muçulmanos. Encontrei, numa loja do mercado velho, um livro belíssimo, todo ilustrado e com capa de couro. Tambem custava pouco, mas o olhar furioso do vendedor me desencorajou a efetuar a compra. É que peguei o livro e comecei a folhear, como faria no Brasil, mas o vendedor interpretou isso como um desrespeito ao alcorão. E isso, no Iêmen, pode significar pena de morte. Quando percebi que o vendedor me fuzilava com os olhos e já começava a trincar os dentes de raiva, disfarcei, coloquei o alcorão de volta e me perdi no meio da multidão. A viagem estava apenas começando. E, decididamente, morrer ali, em praça pública, imolado pela fúria fundamentalista, não estava nos meus planos. Eu não sabia, mas o perigo real e imediato, ainda estava por vir. E ficamos expostos a ele na cidade sagrade de Marib, onde reinou a Rainha de Sabah. Mas isso eu conto depois.

 

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Iemen - O Mundo Proibido - parte I

Pense num lugar onde o tempo parou. Onde as pessoas vivem como viviam seus antepassados, muitos séculos atrás. Onde os moradores andam com fuzis pendurados nos ombros, prontos para serem disparados. Esse lugar existe e fica na península arábica. É o Iêmen, um destino que, para mim, surgiu de repente e por acaso. Estava nos preparativos finais para viajar para o Qatar, onde faria uma série de reportagens para o Jornal da Record, quando Henry Ajl, repórter/produtor/cinegrafista da Baboon, me ligou dizendo que, em vez do Qatar, iríamos para o Iêmen. Quando comecei a pesquisar no Google, levei um susto. Um site de Portugal orientava os turistas a cancelar as viagens agendadas para lá. Outro informava sobre um atentado a bomba que tinha matado, pouco tempo atrás, oito turistas espanhóis. Enfim, todas as informações falavam de um país fechado, remoto e extremamente perigoso para os estrangeiros. Perfeito, portanto! Um lugar ideal para se produzir um bom material jornalístico. Mas a entrada de jornalistas no Iêmen é super-controlada. Para entrar lá, a trabalho, é preciso esperar anos até o visto ser aprovado. Por isso, fomos como turistas. Só Henry e eu. Na bagagem levamos uma câmera pequena, se comparada com as que usamos normalmente na TV, mas com tecnologia para gravar em HD, um microfone de lapela, alguns outros equipamentos, nossas roupas e muita ansiedada. A viagem até lá é demorada. Foram 15 horas até Dubai. Mais 12 horas de espera, no aeroporto, até embarcar num avião surrado da Yemenia, uma empresa aérea estatal. E mais duas horas de vôo até Sanaa, a capital do Iêmen. A cidade, com quase dois milhões de habitantes, tem um trânsito caótico. À primeira vista, parece que todo mundo lá só compra Toyota. Carro, caminhonete, ônibus, carroça, tudo é Toyota! A frota é antiga, formada por carros com mais de vinte anos de uso, e a única regra que vale nas ruas e avenidas é buzinar. O tempo todo. Não interessa se tem alguem na frente ou não. Tem que buzinar! Mas funciona. O trânsito até que flui. No hotel onde ficamos, enquanto aguardava o chek-in e ouvia o cântico que, no final da tarde, emana das mesquitas e ecoa por toda a cidade, vi, numa mesa, um jornal do Iêmen, escrito em inglês. A manchete de capa falava de dois iemenitas que tinham sido condenados à morte por espionagem. Me deu um frio no estômago na hora! Nossa situação, na verdade, era a de espiões também. Dois jornalistas sem autorização para trabalhar no país, munidos de equipamentos de gravação, câmeras, microfones e com um roteiro que passava pelas principais cidades. E apenas um guia para nos levar de um lado para o outro. O cântico agora parecia uma música fúnebre. A ansiedade tinha ido embora. Substituída pela expectativa. E pelo medo também.

Nos próximos posts, conto mais. Inclusive com fotos do lugar.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A incrível história dos Iawanawás - última parte.




Depois da experiência com o rapé indígena, das danças e rituais, fui apresentado à ayahuaska - uma poção feita através da infusão de raízes e folhas. Bira, o cacique da tribo, me explicou pacientemente quais as origens do chá. Ele contou que "em tempos remotos, quando nossos tataravós ainda não haviam nascido, ninguem na nossa tribo conhecia a morte. Mas um dia, numa caçada, o líder da tribo ficou gravemente ferido e não resistiu. Foi a primeira morte entre nosso povo. Esse líder foi enterrado no centro da aldeia. E sobre a sepultura dele nasceram as folhas e o cipó, que começaram a ser consumidos por todos os índios. Depois de consumir o chá, nossos antepassados puderam se encontrar com o líder morto. E descobrimos que não é preciso morrer para reencontrar as pessoas que partem desse mundo." Esta é também uma boa explicação para o nome da bebida. Ayahuaska, na língua quíchua, significa 'cipó dos espíritos'. Dito isto, saímos à procura das raízes e folhas, que foram devidamente cozidas, durante horas, com água do rio. O cipó se chama caapi (Banisteriopsis caapi) e as folhas, chacrona (Psychotria viridis). E um não 'funciona' sem o outro! O cipó provoca as alucinações. E as folhas mantém o sujeito, digamos, num estado de letargia que costumam chamar de 'zen'. Um bate e outro assopra! Bem, junte-se aos poderes das plantas o clima surreal que tomou conta da aldeia: noite super-estrelada, uma lua imensa no céu, todos os índios reunidos e um canto que vara a noite. Nem precisava da ayahuaska pra viajar! E não tomei realmente com este intuito. O objetivo, desde o início, era o de mostrar quais efeitos o chá provoca. E aí, amigos de bar, não existe maneira mais eficaz para descobrir do que experimentando. É preciso deixar claro, no entanto, que a ayahuaska não é considerada droga. Bem, entre os Iawanawás, só os homens tomam o chá. E dezenas deles se reuniram numa fila, esperando pela vez. Tive o privilégio de ser o terceiro a ser servido. Depois do pajé e do cacique, recebi uma dose da bebida. Uma dose mesmo, três dedos num copo de vidro. A bebida tem um sabor amargo e desce raspando pela garganta. Bebi e esperei... Quinze minutos depois, continuava exatamente como antes. Meia hora se passou... e nada. Cinquenta minutos! E tudo bem. A não ser por uma ligeira dormência nas pernas. Bom, eu não sabia que este era o primeiro efeito do chá e resolvi tomar mais uma dose!! E quase imediatamente comecei a flutuar. O braços, de repente, pareciam tentáculos enormes, saindo do meu corpo. O formigamento se espalhou e tomou conta do corpo todo, especialmente da cabeça. Parece que todos os sentidos ficam super-apurados. Você ouve tudo que falam ao seu redor! Foi quando fechei os olhos. E luzes surgiram de todos os lados. Figuras espetaculares se formaram. Me recordo especialmente de uma cena: uma cascata branca, que de repente se transformou em uma cortina cinza. E dela surgiram garras enormes, que a rasgaram de ponta a ponta. Eu estava pronto para ver monstros terríveis surgirem. Mas, em vez deles, foram anjos que apareceram. Abri novamente os olhos. E ali estava o cinegrafista Carlos Bispo gravando tudo. Eu confesso que tentei explicar tudo que via. Não sei se consegui. O cérebro teima em te afastar do mundo real. E de tudo que exija muita concentração e seriedade. Hoje sei que minha experiência foi, na verdade, uma luta constante entre a vontade de mergulhar fundo no subconsciente e a necessidade de manter a lucidez. Porque estava trabalhando. Mesmo assim estive em universos paralelos fascinantes. Tudo bem que as duas doses, mais tarde, se revelaram cruéis. O sono definitivamente não veio. E as ânsias se transformaram em vômitos intermináveis. O bom é que não existe ressaca. Você se lembra de tudo que aconteceu. Tudo que disse. E o melhor: de tudo que viu durante a inesquecível viagem proporcionada pelos iawanawás.

Abaixo o vídeo com a reportagem sobre este lugar, e estas pessoas, tão especiais.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A incrível história dos Iawanawás - Parte III










Caros,


por enquanto, sem tempo para escrever, posto algumas fotos da tribo Iawanawá. Como uma imagem vale mais que mil palavras, não será difícil perceber porque este povo é tão especial. A primeira foto é do rio Gregório, no trecho que fica bem ao lado da aldeia. As outras mostram os preparativos para uma festa Iawanawá. As fotos mostram exatamente o que este povo é: bonito, unido, gentil (mas guerreiro), humilde e, ao mesmo tempo, orgulhoso por suas origens.















quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A incrível história dos Iawanawás - parte II


A história dos Iawanawás me foi contada pelo próprio cacique da tribo, o Bira. Ele tem 45 anos. Parece ter menos, por causa da aparência jovial. Mas as vezes parece ter mais, pela liderança nata e sabedoria que usa para guiar seu povo. Bira viveu algum tempo longe dos Iawanawás. Foi para a cidade grande, estudou, conheceu outra realidade, e então se deu conta que o sentido da vida é estar junto aos seus. Voltou para a reserva, escolheu um lugar às margens do Rio Gregório e montou ali uma nova aldeia Iawanawá. Aos poucos, os Iawanawás foram voltando, construindo suas casas de madeira e se reagrupando. Mas, para Bira, ainda faltava algo. "A aldeia estava novamente povoada, as famílias estavam felizes, mas percebi que nós não tínhamos mais identidade. A gente não fazia mais festa como nossos antepassados faziam e poucos, como eu, falavam a língua Iawanawá. Eu precisava de alguém para ensinar isso aos mais novos. Foi aí que me lembrei de Iawá. (lê-se iauá)", conta. Iawá (que aparece na foto acima, num raro momento de quietude) estava vivendo, solitário, em uma comunidade ribeirinha, e foi resgatado por Bira. Hoje Iawá é o pajé da tribo. Tem 97 anos. Mas, sinceramente, nunca vi ninguem com tanta energia. Ele não para. Fala o tempo todo. Caminha falando, mesmo sozinho. Comanda as danças com os mais jovens. E contagia a todos com sua vitalidade. Aliás, que vitalidade. Iawá tem 32 filhos. A caçula tem 11 anos! E foi este jovem senhor que trouxe de volta as danças, os cantos, os costumes, a tradição. Trouxe de novo, enfim, o orgulho de ser Iawanawá. Encheu a aldeia de alegria. Entre os costumes que Iawá trouxe de volta está o de tomar rapé. E fui convidado por Bira para fazer parte deste ritual, logo na manhã seguinte à nossa chegada. Ele me explicou tudo detalhadamente. Disse que o costume é secular. E que o rapé Iawanawá, além de tabaco, tem também as cinzas de uma árvore considerada sagrada. E que funciona como um ritual de boas vindas e de purificação do corpo. Para tomar a dois, é preciso um instrumento especial. Parece um canudo com mais ou menos dois palmos de comprimento, feito de osso. No meio, tem um arranjo vermelho, feito em couro. Bira me explica que se trata do osso de um gavião real, ave que os Iawanawás consideram sagrada. Além do gavião real, ou harpia, o outro animal sagrado para eles é a onça. "São os mais fortes da floresta. O gavião real é a ave mais forte do mundo. Ele mata macacos e preguiças para comer. É o rei dos céus. E a onça é o animal mais rápido, perigoso e bonito da floresta. É a rainha da terra", acrescenta. Depois da explicação, ele mostra o rapé, dentro de um vidro pequeno. Um pó bem fino e escuro. Coloca um pouco na ponta do canudo e pede que eu segure a outra ponta. Não faço a menor idéia do que vai acontecer. Então ele manda eu colocar a ponta do canudo dentro do nariz e fechar os olhos. E assopra forte. Olha, a primeira impressão é que assopraram brasas para dentro da sua cabeça. A segunda é que a tampa da cabeça saiu e foi parar em Saturno. Você não consegue respirar, os olhos marejam, dá um suador danado e o coração dispara. Depois de alguns minutos, quando o mundo começa a voltar ao normal, Bira pede que eu coloque em outra narina e assopra de novo. Aí é o caos total. As pernas bambeiam e os olhos parecem ter saltado das órbitas. Só consigo respirar pela boca. Dá até ânsia de vômito. Mas depois de algum tempo, a sensação ruim passa. E você se sente leve. Com o corpo e a alma leves. Com a certeza de que o ritual do rapé é mesmo purificador. Aliás, como o Ayahuasca, outro ritual onde a mente é levada à universos paralelos encantadores. E assustadores também. Sobre isso, depois eu conto. Até.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A incrível história dos Iawanawás - parte I

Amigos de bar, me perdoem pelas ausências. Gosto de contar sobre os bastidores das viagens e reportagens que faço mas, desta vez, foram três viagens consecutivas. E com menos de uma semana de espaço entre uma e outra. Aí, fiquei sem tempo e sem instrumentos para atualizar o blog. Mas a vida segue. E a gente segue girando o mundo. Aliás, preciso contar sobre um lugar especialíssimo que conheci, no interior do Acre. Um povo maravilhoso, que dá lições de vida e harmonia. Eles são Iawanawás (lê-se iauanauás), e vivem em uma aldeia que fica escondida do mundo, às margens do rio Gregório. Para chegar até lá, é preciso encarar cinco horas de estrada e outras oito horas de barco. Isso mesmo: oito horas! É que o rio Gregório é muito sinuoso e, nesta época do ano, está baixo demais da conta, tem mais areia do que água. Então, o barco tem que ser movido por um motor de oito cilindradas chamado 'rabeta', apropriado para pequenas embarcações e baixas profundidades. Funciona bem, gasta pouco, faz muito barulho mas 'anda' devagarinho. Por isso, chegamos à aldeia quando o sol já tinha ido embora. A chegada foi uma destas situações dificeis de serem esquecidas. Praticamente todos os índios (cerca de 300) se amontoaram na encosta e apareceram de repente, cantando e saudando nossa chegada. Na margem, só uma pessoa nos esperava: o cacique Ubiracy Brasil Iawanawá, ou Bira, como ele prefere ser chamado. Ao lado dele, subimos a encosta e fomos recebidos por todos os moradores da aldeia. Mas antes de falar dos Iawanawás é preciso contar um pouco da história deles. Séculos atrás, esta nação indígena vivia em terras peruanas mas, ao longo do tempo, foi sendo lentamente 'empurrada' para o Acre por madeireiros e grileiros. Esta pressão fez com que os Iawanawás se tornassem uma das primeiras tribos do Acre a ter contato com o homem branco, cerca de 140 anos atrás. Muitos foram escravizados para trabalhar nos seringais. Outros morreram lutando contra a escravidão. E a maioria fugiu. Foi esta fuga constante e o contato intenso com os brancos que fizeram os Iawanawás se dispersarem. E mais grave, fizeram este povo perder um pouco da identidade. As novas gerações não falavam mais a língua nativa e raros se lembravam dos costumes e tradições Iawanawás. Entre estes costumes está o chá do uní, uma infusão feita com um cipó e folhas que só existem na região onde eles vivem. O uní provoca visões e sensações inacreditáveis. Este chá é, na verdade, a origem do Daime, uma seita que tem milhares de seguidores no estado do Acre. Pois bem, tudo isso está sendo trazido de volta agora, graças à intervenção do cacique Ubiracy Brasil Iawanawá. É o homem que aparece na foto acima, devidamente pintado para uma cerimônia. Foi com ele que tive a honra de tomar rapé, um ritual que os caciques dividem com poucos. E com ele também experimentei o chá do Uní, que me levou a universos paralelos jamais visitados. O resto desta história, eu prometo, conto depois.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Refém da informação

Puxa vida, estava olhando no blog e vi que a última postagem foi em 19 de junho. Mais de um mês atrás! Como dizem os goianos, uma demora dessa não tem base nem quantia. O fato é que, devido às viagens, fiquei incomunicável por algum tempo. Pra vocês terem uma idéia, só fiquei sabendo da morte de Michael Jackson quando ele estava pra ser enterrado. Pra ser bem exato, uma semana depois do falecimento. Fazia tempo que não experimentava esta sensação, de isolamento total do mundo. Ela ocorreu porque estava mesmo numa região remota. E também porque o rádio que nos conectava ao mundo pifou de repente. E aí, meus amigos de bar, foram oito dias sem contato com nada e com ninguém. E quer saber ? Não gostei! Acho que fiquei mal acostumado com essa instantaneidade na informação. Somos bombardeados o tempo todo por notícias e, de repente, você não sabe nem o que está acontecendo na esquina da sua casa. Enquanto estive lá, incomunicável, o mundo parou para chorar Michael Jackson; o Corinthians foi campeão da Copa do Brasil; o Brasil foi campeão da Copa das Confederações; a gripe suína chegou ao Brasil; o ditador coreano Kim Jong-il continuou ameaçando o mundo com seus mísseis e o presidente Lula ficou ainda mais popular. Claro que os corintianos discordarão mas, a rigor, não aconteceu realmente nada que pudesse alterar radicalmente a minha ou a sua vida. Mesmo assim, é sempre bom estar, de novo, ao alcance da informação.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O jornalismo e o diploma

A decisão do Supremo Tribunal Federal, derrubando a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista, foi comemorada pelas empresas. A Rede Globo se pronunciou através de um editorial em pleno Jornal Nacional. A Folha de São Paulo fez o mesmo, no espaço onde publica suas opiniões. Ambos disseram que a decisão é um avanço. Mas onde e quando, exatamente, o jornalismo avança ? Quando permite que qualquer profissional, de qualquer área, possa escrever e ter, ao seu dispor, um espaço nobre em qualquer jornal ou revista ? Quando assegura a todos o direito de empunhar um microfone e sair por aí, fazendo reportagens ? Quando admite que qualquer pessoa paute, entreviste, pesquise, investigue e dissemine informações ? Sou um jornalista formado. Me orgulho do diploma que tenho. Foi conquistado com muito empenho e sacrifício. Mas não foi só isso que conquistei nos quatro anos de faculdade. Lá aprendi também técnicas que me possibilitaram acesso ao mercado. Foi lá que desenvolvi o espirito crítico, indispensável para o exercício da profissão. E foi lá, também, na sala de aula, nos corredores, no contato diário com os professores e colegas, nas palestras com jornalistas e não-jornalistas, que meu caminho foi definido. Esse conjunto de fatores me deu a certeza do acerto na escolha do curso. Da vocação. E mesmo depois de tantos anos na estrada, quando normalmente somos assolados pela presunção do 'tudo saber', aprendi novas técnicas em um curso de pós-graduação. Então, caros, a academia ensina, sim senhor. E aí vem o tosco Gilmar Mendes, aquele que envergonha o judiciário, dizer que 'jornalista é mais ou menos como cozinheiro, qualquer um pode ser.' Uma argumentação tacanha que só poderia ter vindo de onde veio. Mas o argumento decisivo para a inutilização do diploma é outro. No entendimento dos nobres ministros da corte suprema, o diploma não é necessário porque a prática do jornalismo não exige conhecimento científico. E aí eu fico pensando... Será que é preciso conhecimento científico para ser advogado, juiz e, por conseguinte, ministro do Supremo ? Não estamos todos no mesmo balaio ??


Aproveito para inserir aqui uma opinião enviada pelo meu amigo Nicolau, que é jornalista de longa data e professor de jornalismo. Esta opinião foi publicada no post "A banalização do desastre", mas creio que este seja o espaço correto para a manifestação.
Abraços, Nicolau!!

"Gostaria de aproveitar esse seu texto sobre cobertura jornalística, para falar do descalabro dos senhores e senhoras do STF que decidiram pela não obrigatoriedade do diploma de jornalista para enfrentar tal situação, como essa que você conta. Esse pessoal poderia trabalhar em prol de um Brasil melhor. Mas não: decidem pelo fim do conhecimento, da educação, da informação, das investigações jornalísticas, das apurações e reportagens que traduzem a realidade, que reconstituem a realidade. Esse grupo não sabe - ou sabe - o tamanho da besteira que está fazendo com as faculdades de comunicação social, com o desemprego e, em médio prazo, com a falta de conhecimento político do povo brasileiro. Os grotões do Brasil agora vão vibrar com a falta de jornalistas para denunciar as falcatruas que assola o interiorzão. É isso que Brasília inteira quer. É isso que as famílias de todos lá de cima querem. Para eles, estar recebendo os gordos salários pagos pelo POVO BRA-SI-LEI-RO é o bastante. São, a partir de agora, inatingíveis. Estão livres e soltos. Quem vai investigá-los? Quem vai denunciar as contratações de parentes, os mensalões e os castelos? Agora vai ficar do jeito que o DIABO gosta.
Nicolau - Jornalista com Diploma"

quarta-feira, 10 de junho de 2009

A banalização do desastre

Desde a queda do avião da Air France tenho sido questionado diariamente, nas ruas e até por colegas, com a seguinte pergunta: 'por que você não está lá, cobrindo este acidente ?' Acho normal o questionamento. E até me sinto lisonjeado. A lembrança é resultado das duas coberturas que participei, da Gol, em outubro de 1996, e da TAM, em julho de 1997. Ambas foram marcantes e me trazem lembranças. Algumas dolorosas. A profissão que escolhi impõe, muitas vezes, um contato muito próximo com tragédias. E, confesso, jamais conseguirei me distanciar da dor que sentem as pessoas diretamente envolvidas. No acidente com o Boeing da Gol, por exemplo, fiz uma cobertura impessoal até o momento em que vi, de perto, os helicópteros retornando da floresta com o corpos. Era um final de tarde. Um dos primeiros dias de resgate efetivo. Eles surgiram no horizonte, por tras das copas das árvores, como pontinhos pretos no céu. Tão longe que nem dava para escutar o barulho do motor. Nem perceber a carga macabra que traziam. Os helicópteros demoravam bastante até chegar ao campo de futebol da fazenda, improvisado como campo de pouso. Só quando estavam razoavelmente próximos é que pude perceber aqueles cestos enormes pendurados. E fiquei parado, olhando aquilo, totalmente sem ação. Naquele momento, me dei conta de que existia muito mais do que simplesmente 'corpos' ali. Existiam pessoas, histórias de vida, planos, sonhos, alegrias, decepções, enfim, tudo aquilo que faz parte de nossas vidas também. Esta percepção me fez mudar radicalmente o tom da cobertura. Em respeito aos telespectadores e, principalmente, às famílias que estavam sofrendo pela perda de entes queridos. O desfecho da cobertura, com a entrada na floresta e a chegada aos destroços, foi resultado de um conjunto de fatores. Que um dia pretendo contar, em detalhes, num livro que já começou a ser esboçado. Porque escrevo tudo isso ? Acho que tenho ouvido muito, nestes últimos dias, a palavra 'corpos'. E ela tem sido repetida, à exaustão, como se fosse banal. Não é.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Sonho de Ícaro

O acidente com o avião da Air France ocupa o noticiário e nossas mentes porque escapa do convencional. Acidentes aéreos sempre instigaram o homem. Por vários motivos. Porque são improváveis e, por isso mesmo, raros. Porque, normalmente, ceifam muitas vidas. Porque podem acontecer com qualquer um de nós, ou qualquer um dos nossos. Porque, certas vezes, são misteriosos. E, talvez até, porque voar em uma máquina sempre pareceu um desafio às leis da natureza e da física. É como se a natureza ou alguma força maior gritasse em alto e bom som: não insistam, o homem não foi feito para voar! Mas nosso futuro está no espaço. Sempre esteve. Desde Ícaro até a última fronteira. Por isso continuaremos voando. Cada vez mais alto. Cada vez mais distante. E nesta busca, por novos horizontes e fronteiras, teremos percalços. E, a cada novo acidente, repetiremos todas as perguntas. E, indefinidamente, continuaremos a chorar pelos que morrem no céu.

Ensaio mais que barato sobre modus vivendi

Desculpem, caros, pela ausência temporária. As viagens constantes e o trabalho me impedem, infelizmente, de ser tão ativo como gostaria neste blog. Mas todos somos assim, não é ? O tempo é o senhor implacável de nossos passos. E, às vezes, ele nos falta. Mas cabe a nós encontrar o tempo certo para não permitir que ele nos roube também o hábito de conversar, trocar idéias, sugerir, opinar e discutir. É este o objetivo. É justamente o que está página propõe. Nem sempre convergir. Nem sempre divergir. Mas, saudavelmente, discutir. Então, depois deste ensaio barato de filosofia e modus vivendi, nada mais resta do que praticar. Escrevendo, off course. Me aguardem.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Asneiras fenomenais

Resisti o quanto pude para não dar nenhum pitaco sobre Ronaldo, mas agora não tem mais jeito: vou entrar na ciranda. Antes, preciso alertar que sempre fui fã incondicional do Fenômeno. E continuo sendo. Durante o tempo que escrevi, como colunista, para o excelente site 'Bolarolando', deixei isso muito claro. A história dele é cinematográfica. Cheia de dramas, reviravoltas, recomeços e, principalmente, vitórias. Claro que, por ser carioca e declaradamente flamenguista, sempre houve um ou outro jornalista de São Paulo que torcia o nariz quando o assunto era Ronaldo. Mas bastou o cara desembarcar no Corinthians para todo mundo se transformar em 'ronaldista' desde criancinha. E ninguem se atreve a contestar nada que o cara fala. Tudo que vem de Ronaldo é legal, engraçado, inteligente ou cativante. Ronaldo fala e todos concordam. Acham o máximo. É uma babação de ovo que não tem fim! Pois bem. Sei que vou nadar contra a correnteza, mas essa deve ser a postura de quem fala o que pensa. E penso que ele tem dito asneiras fenomenais. A maior de todas foi dita na sabatina da Folha de São Paulo. A pergunta era sobre o filho dele, Ronald, de 9 anos. Ronaldo disse o seguinte:

"Prefiro que o Ronald seja criado na Espanha. A mãe dele também prefere. Aqui no Brasil, as crianças da idade dele, de 9 anos, já tem um palavreado malandro. Lá, ele não fala nenhum palavrão. É um doce de menino, praticamente um europeu.

Nesse momento, uma mulher grita, na platéia: "Ele é brasileiro!"

Ronaldo prossegue:

"É brasileiro, mas eu prefiro que tenha amiguinhos europeus, sem a malandragem dos amiguinhos brasileiros. A gente quer sempre o melhor pros filhos, e eu, podendo escolher, prefiro que ele tenha educação europeia."

Que Ronaldo prefira uma educação européia, tudo bem. Inquestionável que ele, como todos os pais, queira o melhor para o filho. O que não pode é um sujeito como ele, ídolo de milhões de crianças no mundo todo, dizer que o filho "é um doce de menino, praticamente um europeu". E "prefiro que tenha amiguinhos europeus, sem a malandragem dos amiguinhos brasileiros". São pensamentos preconceituosos. Será que no Brasil todas as crianças são 'malandras' ? Será que na Europa só existem crianças virtuosas ? Será que o 'doce' Ronald se tornará um criminoso ou um malandro se conviver com amiguinhos brasileiros ? Para Ronaldo, parece não haver dúvidas quanto a isso. Eu, do lado de cá, acho um absurdo uma declaração dessas. Até porque tive a felicidade de ter, na infância, amigos que moravam numa casa onde o piso era de terra batida. E aquele chão era varrido todos os dias. Várias vezes por dia. Quantas vezes almoçamos juntos, sabendo que não poderíamos repetir, porque a comida (arroz, feijão e angu) não daria pra tanto. E ninguém, Ronaldo inclusive, tem idéia de como tudo isso me ajudou a conhecer e cultivar novos valores. Que, tenho certeza, nenhuma escola ou amigos europeus teriam me propiciado. Não sou contra o ensino em outros países. Se um dia tiver condições, ficarei feliz vendo meus filhos estudando no exterior. Mas antes eles conhecerão a realidade do país onde nasceram. Farão muitos amigos por aqui. Jamais negarão a origem. E, espero, não se deixarão influenciar por nenhum 'brahmeiro' famoso. Por mais gols e genialidade que ele tenha mostrado nos gramados.


Clique abaixo para ver o vídeo onde Ronaldo manifesta sua opinião.
http://noticias.bol.uol.com.br/esporte/2009/05/15/ult951u237.jhtm

quinta-feira, 14 de maio de 2009

As várias vítimas de um mesmo crime

A doença do momento é a gripe suína, ou gripe A, como rebatizaram agora. Mas nenhuma pandemia foi ou é mais potencialmente mortal do que a Aids. Simplesmente porque, apesar de várias e eficientes formas de prevenção, o contágio continua incontrolável. E a doença ainda é incurável. No entanto, a Aids é relegada a um segundo plano na mídia. O motivo ? Ibope! É isso mesmo! Não que o Instituto que mede a audiência (será que mede mesmo ?) impeça a divulgação, nada disso! É que reportagens sobre a doença ou sobre HIV positivos despencam no Ibope. É fato! Ninguem sabe se os telespectadores não gostam do tema, mas o fato é que o rejeitam. E, infelizmente, o jornalismo também é refém da audiência. O Domingo Espetacular, porém, ainda tenta vencer esta resistência e está produzindo uma reportagem sobre o assunto. A matéria está sendo feita por uma equipe do Rio de Janeiro mas fui chamado para contribuir, fazendo uma entrevista no CDP (Centro de Detenção Provisória) em Americana, no interior de São Paulo. O entrevistado é soropositivo. Um homem de 45 anos. Açougueiro. Pessoa simples. Do bem, pelo que pude perceber na entrevista. Ele contraiu o vírus mantendo relações com a própria esposa que, por sua vez, tinha sido contaminada através de uma transfusão de sangue. Feita num hospital público. Bem, este nosso personagem está preso há seis meses e vai ser julgado por tentativa de homicídio. O crime que ele cometeu ? Contaminou outras duas mulheres. A história é longa, mas vou resumir. A esposa dele morreu dois anos depois da contaminação. Ele fez exames para ver se estava com HIV mas, com medo, não foi pegar os resultados. E voltou a namorar. E, nestes namoros, contaminou as namoradas. E agora está sendo processado por elas. Uma promotora levou as denúncias adiante. E uma juíza acolheu as denúncias. E o homem está preso, aguardando julgamento. Julgamento que vai dar o que falar. Porque existem muitas perguntas subjetivas envolvidas. Ele é culpado pela contaminação das moças ? Claro que sim. Mas ele queria matá-las ? Eis a questão. Ele diz que as contaminou por ignorância. Achava que a contaminação só aconteceria se houvesse ejaculação. E, por isso, na hora H, ele ejaculava para fora. O advogado de defesa entende que ele deu azar porque a denúncia foi feita por uma promotora. E caiu nas mãos de uma juíza. Ele acha que houve um certo corporativismo. Mas admite que o cliente cometeu um crime, inclusive previsto no código penal: o de transmitir intencionalmente uma doença contagiosa. Bom, eu, do lado de cá, entendo que ele cometeu um crime. Qual foi, cabe à justiça definir. Agora, a pergunta que não quer calar: e o hospital público onde foi feita a transfusão de sangue ? Ali dentro não foi cometido nenhum tipo de crime ? Será que não estamos falando de várias vítimas e de um único criminoso ?

terça-feira, 12 de maio de 2009

E o Rio continua sendo...

O Rio de Janeiro
Continua lindo
O Rio de Janeiro
Continua sendo
O Rio de Janeiro
Fevereiro e março...

A canção "Aquele abraço", de Gilberto Gil, é uma das mais lindas homenagens já feitas ao Rio de Janeiro. Gosto da música porque, confesso, além da beleza da letra e melodia, sempre tive uma paixão platônica pela cidade. O Rio foi a primeira capital que conheci. Foi lá também que vi, pela primeira vez, o mar. Tardiamente, claro, como cabe a um bom mineiro: já tinha 14 anos quando dei um glorioso mergulho na praia do Flamengo. E levei um caldo daqueles! E é de lá também o time que me faz vibrar e me faz sofrer. Enfim, para mim, o Rio sempre foi lindo. Apesar de todas as imagens, textos, fatos e fotos sobre o cotidiano carioca sempre dizerem o contrário. E bastaram dois dias lá, vivendo o cotidiano de quem precisa de delegacias e delegados, para perceber que a verdade, infelizmente, está com as imagens, textos, fatos e fotos. Que o 'meu' Rio não existe mais. Que, pior ainda, talvez nunca tenha sequer existido. Estive em duas delegacias. A primeira, num lugar chamado Rio do Ouro, mais parece um pardieiro. Uma casa velha, com cômodos pequenos e paredes desgastadas onde ainda se ouve o tec-tec de antigas máquinas de escrever. Na sala do delegado, também pequena, uma mesa atulhada de papéis, uma cadeira e um sofá rasgado compõem o ambiente. Que combina com as roupas de delegados e investigadores. E com o comportamento deles também. Indiferentes, arrogantes, prepotentes. Não conosco, com a nossa equipe, mas com as pessoas que aguardavam no balcão para serem atendidas. E o mesmo se repetiu em outra delegacia, em Bonsucesso. A delegada, investigadores e escrivãos estão, sem dúvida, melhor instalados que seus pares de Rio do Ouro. O prédio é maior, tem portas de vidro, ar condicionado e computador. Mas o tratamento ao público consegue ser pior. Todos devem ter lido as mesmas cartilhas! Quando chegamos na delegacia, as 15:30h, havia várias pessoas esperando atendimento. Nada excepcional, tipos, homicídios, latrocínios... Apenas registro de Bos, relatos de furtos e roubos. Pois bem. Durante o tempo em que ficamos esperando pela entrevista, exatas três horas e dez minutos, apenas duas pessoas foram atendidas. Um escrivão que, decerto acostumado a vida inteira com antigas Olivettis, batia com uma força absurda nas teclas do computador, conseguiu demorar 50 minutos para registrar um boletim de ocorrência. Cinquenta minutos, devidamente cronometrados! Uma outra moça, que teve a bolsa roubada, veio preparada. Trazia nas mãos um papel, com a minuciosa anotação de tudo que havia na bolsa: documentos, cartões, folhas de cheques, etc. De nada adiantou. Quando chegamos, as 15:30h, a moça já estava lá. Quando saímos, as 18:40h, a moça continuava lá. Menos mal que já estava sendo atendida. Mas por um policial que não se constrangia em interromper o que estava fazendo para atender a toda hora o telefone. E até gargalhar de vez em quando. É por isso, amigos de bar, que bastaram dois dias para compreender porque o Rio de Janeiro continua sendo: porque ninguem está nem aí pra nada! E dá-lhe Gilberto Gil...

Todo mês de fevereiro
Aquele Abraço!
Alô moça da favela
Aquele Abraço!
Todo mundo da Portela
E do Salgueiro e da Mangueira
E todo Rio de Janeiro
E todo mês de fevereiro
E todo povo brasileiro
Ah! Aquele Abraço!...

quinta-feira, 30 de abril de 2009

O faroeste caboclo da Amazônia

A Amazônia é uma fonte inesgotável de matérias. Meu coração de jornalista pulsa mais forte toda vez que vou para aquelas bandas. É impressionante como a região nos oferece situações e personagens fascinantes. Sei que basta cavocar, aqui e ali, pra dar de frente com grandes reportagens. Nesta última viagem que fiz, à região de Altamira, não foi diferente. A pauta inicial era mostrar as consequências da enchente que varreu a cidade. Depois disso, tinha a incumbência de visitar Medicilândia, onde tambem foi possível produzir um bom material. E aí, restava a terceira, que eu mesmo tinha que encontrar. Esta reportagem, que vai ao ar neste domingo, começou a se desenhar logo que desembarcamos em Altamira. Na verdade, tínhamos acabado de chegar ao hotel e estávamos fazendo o check-in, quando um sujeito entrou, apavorado, e disse ao recepcionista que um hóspede tinha acabado de ser baleado em pleno centro da cidade. Aliás, baleado é pouco. O sujeito tinha sido executado mesmo. Com sete tiros. Cinco deles no rosto. Assuntando aqui e ali, descobri que o rapaz assassinado era madeireiro. E que este tipo de execução era mais ou menos comum na região. Bem, este foi o start. Esta era a matéria que faltava: afinal, o conflito de terras na Amazônia não acabou ? Definida a pauta, era preciso encontrar a resposta. E saí a campo. Depois de muita andança pela transamazônica, descobri que a região que envolve os municípios de Altamira, Uruará e Anapu, ainda é, sim, um foco constante de violência. De conflitos que envolvem pessoas ricas e influentes. Bandidos travestidos de madeireiros ainda formam milícias armadas. Pistoleiros armados ainda torturam e matam pela posse de madeira e terras. Terras, aliás, que pertencem à União. Só pra se ter uma idéia do que é esta violência que encontramos: Uruará tem cerca de 20 mil habitantes. A maioria mora na zona rural. E entre março e agosto do ano passado aconteceram 30 homicídios na cidade. Trinta! Quase todos por causa da briga por madeira. Claro que inocentes também morrem nesta guerra não declarada pela posse da terra. Uma guerra que não começou agora. Nos primórdios, índios também guerrearam na Amazônia, brigando por terras onde havia mais caça e melhor pesca. A diferença é que os 'homens brancos de olhos azuis' agora matam por causa da madeira. A vítima mais conhecida é Dorothy Stang, missionária americana assassinada em Anapu, quatro anos atrás. Mas brasileiros anônimos continuam sendo mortos, nesta guerra insana que envolve o que existe de mais precioso na Amazônia: a madeira de lei que se espalha por milhares de quilômetros quadrados. A reportagem vai mostrar um pouco desse quadro sombrio. Mas, amigos de bar, não se deixem enganar pelo clima de faoreste que permeia o vt. Altamira não é assim. Uruará também não. Nem Anapu ou Medicilândia. A violência está em volta, mas todos que vivem nestas cidades são trabalhadores. Homens que vieram de longe em busca de um sonho. Incentivados pelo desbravamento e pela conquista de uma terra que, na época, era prometida. Neste faroeste caboclo existem muito mais inocentes do que bandidos. Mas os poucos bandidos têm dinheiro, influência e poder. Por isso, continuam matando. E, neste Brasil do andar de baixo, ainda se mata impunemente.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Gripe canina

De tempos em tempos a humanidade é posta à prova. Quando não são desastres naturais, o próprio homem se encarrega de criar alguma hecatombe. Desta vez, a ameaça se chama gripe suina. Depois da gripe espanhola, da vaca louca e da gripe aviária, eis que surge um novo vírus, pairando perigosamente no ar. Penso que, depois de todo alarde, a gripe vai ser debelada. Antes, porém, vai ceifar vidas. Principalmente nos paises menos desenvolvidos, onde o diagnóstico é mais demorado. Ou seja, o nosso está na reta. O negócio é se informar e se prevenir. E torcer para que, algum dia, este vírus mutante não atinja os cães. Já pensou ? Quase todos os brasileiros temos nossos Rex, Bidus, Alefs e Jimys em casa. E, por causa dessa proximidade, nossos cães seriam os vetores mais potencialmente perigosos para espalhar uma nova praga. Mas enquanto a gripe canina não chega, vamos nos prevenir desta, que está chegando. Click no link abaixo e saiba tudo que você sempre quis saber sobre gripe suina mas tinha vergonha de perguntar.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u556537.shtml

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Carta aberta aos jornalistas do Brasil

Meus amigos de bar, fazia tempo que não vibrava tanto como vibrei ao ver a descompostura que o Ministro Joaquim Barbosa passou no tosco Gilmar Mendes. Aliás, eu já havia postado alguns comentários sobre o truculento ministro Mendes e, confesso, não pretendia voltar ao assunto. Mas o Gilmar Mendes não sossega o facho. E levou uma bofetada com luva de pelica. Quem não viu, acesse o link abaixo:

http://www.youtube.com/watch?v=sIUdUsPM2WA


A propósito, recebi uma carta, repassada pelo caro amigo Henrique Picarelli, que esclarece, entre outras coisas, que o nefando ministro tem, sim, antecedentes comportamentais. Leiam.


Carta aberta aos jornalistas do Brasil

19/03/2009 20:54:59
Leandro Fortes

No dia 11 de março de 2009, fui convidado pelo jornalista Paulo José Cunha, da TVCâmara, para participar do programa intitulado Comitê de Imprensa, um espaço reconhecidamente plural de discussão da imprensa dentro do Congresso Nacional. A meu lado estava, também convidado, o jornalista Jailton de Carvalho, da sucursal deBrasília de O Globo. O tema do programa, naquele dia, era a reportagem da revista Veja, do fim de semana anterior, com as supostas e “aterradoras” revelações contidas no notebook apreendido pela Polícia Federal na casa do delegado Protógenes Queiroz, referentes à Operação Satiagraha. Eu, assim como Jailton, já havia participado outras vezes do Comitê de Imprensa, sempre a convite, para tratar de assuntos os mais diversos relativos ao comportamento e à rotina da imprensa em Brasília. Vale dizer que Jailton e eu somos repórteres veteranos na cobertura de assuntos de Polícia Federal, em todo o país. Razão pela qual, inclusive, o jornalista Paulo José Cunha nos convidou a participar do programa. Nesta carta, contudo, falo somente por mim. Durante a gravação, aliás, em ambiente muito bem humorado e de absoluta liberdade de expressão, como cabe a um encontro entre velhos amigos jornalistas,discutimos abertamente questões relativas à Operação Satiagraha, à CPI das EscutasTelefônicas Ilegais, às ações contra Protógenes Queiroz e, é claro, ao grampo telefônico – de áudio nunca revelado – envolvendo o presidente do Supremo TribunalFederal, ministro Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás. Em particular, discordei da tese de contaminação da Satiagraha por conta da participaçãode agentes da Abin e citei o fato de estar sendo processado por Gilmar Mendes por ter denunciado, nas páginas da revista CartaCapital, os muitos negócios nebulosos que envolvem o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), de propriedade do ministro, farto de contratos sem licitação firmados com órgãos públicos e construído com recursos do Banco do Brasil sobre um terreno comprado ao governo do DistritoFederal, à época do governador Joaquim Roriz, com 80% de desconto. Terminada a gravação, o programa foi colocado no ar, dentro de uma grade de programação pré-agendada, ao mesmo tempo em que foi disponibilizado na internet, na página eletrônica da TV Câmara. Lá, qualquer cidadão pode acessar e ver os debates,como cabe a um serviço público e democrático ligado ao Parlamento brasileiro. O debate daquele dia, realmente, rendeu audiência, tanto que acabou sendo reproduzido em muitos sites da blogosfera. Qual foi minha surpresa ao ser informado por alguns colegas, na quarta-feira passada, dia 18 de março, exatamente quando completei 43 anos (23 dos quais dedicados ao jornalismo), que o link para o programa havia sido retirado da internet, sem que me fosse dada nenhuma explicação. Aliás, nem a mim, nem aos contribuintes e cidadãos brasileiros. Apurar o evento, contudo, não foi muito difícil: irritado com o teor do programa, o ministro Gilmar Mendes telefonou ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, do PMDB de São Paulo, e pediu a retirada do conteúdo da página da internet e a suspensão da veiculação na grade da TV Câmara. O pedido de Mendes foi prontamente atendido. Sem levar em conta o ridículo da situação (o programa já havia sido veiculado seisvezes pela TV Câmara, além de visto e baixado por milhares de internautas), esse episódio revela um estado de coisas que transcende, a meu ver, a discussão pura e simples dos limites de atuação do ministro Gilmar Mendes. Diante desta submissão inexplicável do presidente da Câmara dos Deputados e, por extensão, do Poder Legislativo, às vontades do presidente do STF, cabe a todos nós, jornalistas, refletir sobre os nossos próprios limites. Na semana passada, diante de um questionamento feito por um jornalista do Acre sobre a posição contrária do ministro em relação ao MST, Mendes voltou-se furioso para o repórter e disparou: “Tome cuidado ao fazer esse tipo de pergunta!”. Como assim? Que perguntas podem ser feitas ao ministro Gilmar Mendes? Até onde, nós, jornalistas, vamos deixar essa situação chegar sem nos pronunciarmos, em termos coletivos, sobre esse crescente cerco às liberdades individuais e de imprensa patrocinados pelo chefe do PoderJudiciário? Onde estão a Fenaj, e ABI e os sindicatos?Apelo, portanto, que as entidades de classe dos jornalistas, em todo o país, tomem uma posição clara sobre essa situação e, como primeiro movimento, cobrem da Câmara dos Deputados e da TV Câmara uma satisfação sobre esse inusitado ato de censura que fere os direitos de expressão de jornalistas e, tão grave quanto, de acesso a informação pública, por parte dos cidadãos. As eventuais disputas editoriais, acirradas aqui e ali, entre os veículos de comunicação brasileiros não pode servir de obstáculo para a exposição pública de nossa indignação conjunta contra essa atitude execrável levada a cabo dentro do Congresso Nacional, com a aquiescência do presidente da Câmara dos Deputados e da diretoria da TV Câmara que, acredito, seja formada por jornalistas. Sem mais, faço valer aqui minha posição de total defesa do direito de informar e ser informado sem a ingerência de forças do obscurantismo político brasileiro, apoiadas por quem deveria, por dever de ofício, nos defender.

Leandro Fortes
Jornalista
Brasília, 19 de março de 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Medicilândia

É, o nome é esse mesmo: Medicilândia. Quando eu vi, confesso que pensei em algo relacionado com medicina. Mas quanta ingenuidade! Bastava conferir a localização. Medicilândia é uma pequena cidade às margens da rodovia transamazônica, fundada por volta de 1972, no governo de Emílio Garrastazu Médici. E o nome é uma homenagem ao presidente que comandou o 'milagre econômico' que, anos depois, cobraria sua conta. Então, Medicilândia é uma cidade tranquila, com cerca de vinte mil habitantes, e que encontra no cacau a base de sua economia. Como assim ? Cacau na Amazônia ? Mais uma surpresa, né ? Pois é, Medicilândia é dona, hoje, da maior produção de cacau do Brasil. E só. Mas a pequena cidade já viveu tempos melhores. Foi sede da primeira usina de açúcar e álcool da região norte. Como os militares, naquele tempo, não tinham imaginação nenhuma e adoravam bajular os Estados Unidos, batizaram a usina com o nome de Abraham Lincoln. Não contavam, porém, com a astúcia dos paraenses, que acharam que o presidente americano não tinha nada a ver com nada e rebatizaram informalmente o lugar como Usina do Pacau. Convenhamos, um nome muito mais simples, amazônico e bonito do que o anterior. E o projeto Pacau, na época, atraiu milhares de pessoas para Medicilândia. Quem vinha ganhava casa, terras, dinheiro e emprego. Mas também, assim, até eu!! Só que a Usina sempre foi deficitária. E, por isso, acabou sendo fechada em 2001. Este é o resumo da história. Mas foi por tudo isso que fui até Medicilândia. Fazer uma reportagem e mostrar às quantas anda a usina e a cidade. Amigos de bar, o que encontrei lá resume o que foi o Brasil dos militares: megalomaníaco, utópico, injusto e perdulário. Imagine uma usina inteira completamente abandonada. Com todas as máquinas, equipamentos, materiais... tudo apodrecendo sob a chuva e o calor implacável da Amazônia. Dezenas de carros, caminhonetes e caminhões abandonados. Esquecidos ao relento. Máquinas pesadas abandonadas no meio do mato. O desperdício impressiona. Mas o que entristece mesmo é ver o abandono das pessoas. Sabe aqueles milhares que chegaram a reboque da 'ordem e progresso' ? Continuam lá, tão esquecidos quanto a usina, os equipamentos e as promessas de uma vida digna. Todos dependiam da usina e o fechamento provocou um impacto econômico e social jamais visto na cidade. O mesmo governo que atraiu estas pessoas se esqueceu delas. Atraiu e traiu. É por isso que Medicilândia é um retrato bem acabado do Brasil de ontem e de hoje. Um país que, apesar dos pesares, continua sendo injusto com seu povo.

sábado, 18 de abril de 2009

Douglas - o menino de Altamira

Altamira, no interior do Pará, é uma cidade movimentada. O trânsito, com muitas motos e bicicletas, é algo caótico, mas os moradores parecem acostumados com a falta de regras nas ruas. Principamente agora, quando muitos estão tentando reconstruir suas vidas, varridas por uma enxurrada gigante jamais vista na região. Ontem, enquanto conversava com moradores ainda assustados pela tragédia, percebi um garoto sempre ao lado, acompanhando atento as entrevistas. Embora já tivesse conseguido bons depoimentos, resolvi falar com ele também. E consegui a melhor das entrevistas. Douglas tem apenas nove anos. E ainda está claramente atordoado com tudo que viu e viveu nos últimos dias. A água invadiu sua casa. Levou móveis, cadernos, brinquedos. E levou também um pouco da inocência de Douglas. Depois que descreve, chorando, como ajudou o pai a salvar um pouco do que tinham, o menino endurece o olhar e faz cobranças para o poder público. Pergunta: "Como deixaram isso acontecer ? Todo mundo sabia que as barragens podiam estourar e ninguém fez nada. E agora ?" Ele faz uma pausa para enxugar outra lágrima teimosa e completa: "Agora não adianta fazer fiscalização. A água já levou tudo que a gente tinha." É... o pequeno Douglas está aprendendo, da pior maneira possível, que nossos políticos, nossos orgãos de fiscalização, enfim, que nossas 'autoridades', raramente pensam no bem estar coletivo. Que elas quase nunca agem pensando no conforto e na segurança dos cidadãos. Que as 'autoridades competentes' adoram luzes, câmeras e microfones e sabem fazer discursos recheados de hipocrisia. Que amam ganhar passagens aéreas, empregar parentes e amigos e se lixam para o povo. E que isso acontece em Altamira, em Belém, em São Paulo, Brasília e em quase todos os cantos deste imenso e belo país. Douglas está menos inocente, no sentido de não confiar tanto no que as pessoas dizem. Ele aprendeu uma nova e dura lição. Que outros muitos milhões de adultos brasileiros infelizmente ainda não aprenderam.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Outra piada pronta ?

Certo está o Zé Simão quando diz que este é o país da piada pronta. Olha só a manchete postada agorinha pela Folha Online:

"Daniel Dantas recorre ao STF para ficar calado em depoimento à CPI"

"O banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, recorreu ao STF (Supremo Tribunal Federal) para ficar calado durante depoimento para a CPI das Escutas Clandestinas da Câmara, marcado para quinta-feira (16). Dantas é investigado na Operação Satiagraha, que apura supostos crimes financeiros atribuídos ao banqueiro."

Bem, o que vocês acham que vai acontecer ? Um doce para quem acertar! Só para refrescar a memória de todos, o presidente do STF se chama Gilmar Mendes. O mesmo que, em plena madrugada, foi pródigo em conceder habeas corpus para Daniel Dantas. E foi do STF também que saíram ordens de soltura para a dona da Daslu, para a turma da Camargo Correia, enfim, para todos os endinheirados que foram parar atrás das grades.

A propósito, dia desses, o Fernando Lyra, ex-ministro da Justiça no governo FHC, deu uma entrevista e disse algumas coisas sobre Gilmar Mendes:

"O presidente do Supremo está falando demais. Demais mesmo, muito mais do que seria prudente e desejável. Ele comenta todos os casos, principalmente os crimes que envolvem a elite."

"Ele se porta como se fosse a maior autoridade no Brasil, coisa que ele não é. Ele é, circunstancialmente, presidente de um poder. E eu não vejo ele se pronunciar sobre essa mortandade, sobre essa matança toda no Brasil."

"A opinião pública se confunde, não consegue entender porque ele se pronuncia sempre em relação a juízes, policiais, promotores, enquanto não toca no assunto dos réus. Ele fala o tempo todo sobre o Brasil de cima, mostra suas preocupações com isso, enquanto no Brasil de baixo nunca se sabe quem morreu, assim como não se sabe quem matou."

"Essa situação de hoje é a explicitação do apartheid. Os crimes que a ele parecem interessar são os da elite, onde surge a elite, o resto é abandonado ao silêncio, como se todos os mortos fossem apenas criminosos. Mas alguém aí sabe quem matou, quem morreu? Alguém investigou, verificou, confirmou? E já que é pra falar, alguém falou?"

É, Fernando Lyra dá um tapa na cara da justiça. Se bem que, nos tempos dele como ministro, a Polícia Federal também não prendeu ninguém, viu ? Embora diga verdades, é o roto falando do rasgado.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Afinidades entre nós e eles

Tipos 'pra não dizer que não falei das flores'. Recebi este link de um amigo chamado Claudionor Pecorari. Como o nome denuncia, ele próprio descendentíssimo (será que existe esta palavra ?) de italianos. É pra dar risada e também para pensar: será que nós brasileiros, não somos todos descendentes de italianos ??? Click abaixo e veja se descobre afinidades entre nós e eles. Eu vi um monte!!
http://tcc.itc.it/people/rocchi/fun/europe.html

terça-feira, 7 de abril de 2009

Bangladesh - Urinando no congestionamento


Bangladesh é realmente diferente de tudo que já imaginei conhecer. E este país até meio surreal se revelou, para mim, bem antes do que poderia imaginar. Embarcamos em Bangkoc, numa companhia aérea chamada Biman (Bangladesh Airlines). E olha, se você acha que já voou, no Brasil, em uma sucata, então não tem idéia do que é realmente uma sucata. Pensa num ônibus velho. Com assentos rasgados, cinzeiros soltos, bagageiros que não fecham... Pensou ? Então é mais ou menos isso. As turbulências, meu amigo, num céu de brigadeiro, podem até quebrar a espinha de algum passageiro adormecido. E o vôo dura seis horas! Então, quando desembarcamos, foi um alívio. Mas não poderia imaginar o que nos esperava no trajeto entre o aeroporto e o hotel. Vocês talvez nem acreditem. Porque é um realismo meio absurdo. Surreal mesmo. Primeiro, porque, como no Brasil não existe representação diplomática de Bangladesh, você tem que tirar o visto no próprio aeroporto. O sujeito que nos recebeu, num escritório bem acanhado, ficou visivelmente feliz quando soube que éramos brasileiros. E em Bangladesh, como no Iêmen, e em qualquer lugar do terceiro mundo, a palavra 'brasileiro' abre muitas portas. O que mais se ouve é: "Brasil, Ronaldino, Kaka, number one!!" Bendito futebol, viu ? Claro que, com essa simpatia toda, mais um agrado, é possível abrir até fronteiras. O nosso gentil anfitrião não teve nenhum pudor em, depois de verificar nossos passaportes, perguntar, sorridente, num inglês titubeante: "temos gorgeta, temos gorgeta ?" Claro que temos! E vinte dólares fizeram o gordinho moreno de bigodes e cabelos lisos nos livrar de todo e qualquer desembaraço alfandegário. Até o raio-x ficou para trás. Ele, soberano, manda prender e manda soltar naquele aeroporto. E como gostou de nós, abriu caminho até a porta de saída do aeroporto. E aí vem a segunda parte. Meus amigos de bar, o aeroporto de Dahka, capital de Bangladesh, não empata com nenhum aeroporto brasileiro que eu conheça. E olha que eu conheço muito aeroporto meia-boca no Brasil. Pois este perde até para algumas rodoviárias brasileiras. Apesar de ter ar condicionado, é cheio de pernilongos. Não tem sequer lojas, bares, etc. Até porque o país é majoritariamente muçulmano. E em país muçulmano não se vende bebida alcoólica. Então, pra que bar, não é mesmo ? E quando você sai do aeroporto, o que te espera são táxis que parecem saídos daquelas competições onde os carros ficam batendo uns nos outros. Sei que parece exagero, mas é a pura verdade! Carros amassados até a medula! Ou até a rebimboca da parafuseta! Mas não precisamos pegar taxi. Tínhamos uma van esperando por nós. Sem ar condicionado, evidentemente, apesar do calor senegalesco as 8 da noite. Encarapitados atrás da van, com todos os vidros abertos, descobrimos rapidamente que as ruas e avenidas de Dahka mais se parecem com pistas de competição! Olha, descrever o trajeto entre o aeroporto e o hotel é impossível! Sei que, depois de alguns minutos, você começa a acreditar que nunca existiu nenhuma regra de trânsito no mundo. Que todos podem cortar as faixas, passar em sinais vermelhos, dar fechadas radicais, enfim, ignorar toda e qualquer norma e regra, não só de trânsito, mas de relacionamento, de sobrevivência. O auge de tudo aconteceu quando o motorista parou num dos congestionamentos (que existem em qualquer hora e qualquer lugar de Dahka) e desceu do carro! Não satisfeito, se instalou tranquilamente atrás de um poste e deu uma urinada de fazer inveja. Claro que, durante esse tempo, o sinal abriu, o trânsito andou... Muitos carros buzinaram insistentemente atrás de nós. E nosso motorista lá, tranquilo, absoluto, senhor da situação... na mijada do século. Bem... demoramos duas horas para chegar ao hotel. Acho que a média não passou de quinze quilômetros por hora. No dia seguinte, eu descobriria que nosso motorista, apesar da invejável mijada, tinha sido incrivelmente rápido. É que o trânsito de Dahka está, realmente, acima de qualquer coisa que você tenha sonhado. Claro, 'sonhado', no pior de seus sonhos. Depois eu conto mais sobre o 'formigueiro humano' de Bangladesh. Ah, e também sobre a maior praia do mundo, que estou devendo desde a primeira postagem.

Ecos da Ditadura II

No último domingo foi ao ar, no programa 'Domingo Espetacular', reportagem que fiz repercutindo o uso da palavra 'ditabranda', em editorial publicado pela Folha de São Paulo. 'Ditabranda' seria, para os editorialistas da Folha, uma ditadura não tão dura assim. A palavra até permite pensar em um regime brando, meigo, amigo, aceitável. Fiquei pensando... Será que também existem regimes que podem ser chamados de 'democraduras' ? Alguém sabe se existe ? Será que tem ? Bem, o fato é que, apesar de um tempo razoável (13 minutos), nunca é possível, numa reportagem de tv, retratar os personagens com todas as suas angústias, dores e lembranças. O tempo não permite que se coloque o depoimento na íntegra. Foi por isso que postei, em 01/04, 'Ecos da Ditadura', transcrevendo a entrevista de Ieda Seixas. Desta vez transcrevo trechos da entrevista concedida por Rose Nogueira, que tambem foi torturada nos porões do DEOPS, em São Paulo. Rose é jornalista. Foi presa em 04 de novembro de 1969. Na época, ela tinha 23 anos e trabalhava como repórter para a 'Folha da Tarde', que pertencia ao grupo Folha. Rose tinha tido um filho apenas um mês antes da prisão. Ficou sem vê-lo por longos nove meses. Tempo em que ficou presa. Tempo em que foi torturada. Conheça um pouco mais da história de Rose Nogueira. Por ela mesma.

- "Eu estava numa sala, um dia, com a porta aberta. Ele (o torturador) tirou a minha roupa e me dava beliscões, me torcia inteira. Eu fiquei inteiramente preta, principalmente nas nádegas. E aí veio um outro, que entrou e ajudou. Juntos! Isso durou, não sei, uma eternidade. Eu era torturada, machucada, porque cheirava a leite azedo... Tinha dado à luz um mês antes... Isso incomodava eles..."

- "Teve um dia que um guarda lá, que era polícia do exército que ficava lá no corredor, acho que ficou com pena, trouxe um inseticida pra gente. Pra mim e pra Elza. Nós jogamos ali, tinha mais de duzentas baratas que nós matamos. Aí ficou aquele cheiro de barata morta e eles não vinham recolher. Você imagina... uma pessoa recém parida numa situação dessas..."

-"Como ainda sangrava, e me deixaram cinquenta dias sem tomar banho, acabei pegando uma infecção muito forte. E ninguém me socorria. Eles pensaram que eu fosse morrer... Quando me mandaram para o hospital, acharam que eu não voltaria. Não voltaria viva, entende ?
Sobrevivi. Mas nunca mais pude ter filhos..."

- "Quando saí da prisão fui até o jornal onde, eu achava, ainda trabalhava... Mas estava tudo muito diferente da 'Folha da Tarde' que eu tinha deixado quando eu fui ter o bebê. Já era uma coisa sombria...Várias pessoas fizeram que não me conheciam... Foi um horror. Um horror, um horror...

- "Mais tarde descobri que tinha sido demitida. O motivo alegado por eles ? Abandono de emprego. Mas eles sabiam que eu tinha sido presa. Sabiam disso o tempo todo. No dia nove de dezembro, que é quando eles me deram abandono de emprego, era exatamente o dia em que eu estava sendo mais pressionada, torturada e machucada."

- "Eu fui julgada, junto com vários outros, meu marido e vários outros, fui julgada e fomos absolvidos. Quer dizer, ao final disso tudo, de todo esse sofrimento, eu fui absolvida! O governo recorreu, o governo militar, e fui absolvida de novo. E eu não sei se tinha segunda ou terceira instância. Eu sei que cinco anos depois veio a confirmação da minha absolvição. Muito bem! A ditadura me absolveu. Então, porque a folha precisava me punir?"

- "Quando eu li aquilo (ditabranda) eu chorei, chorei. Eu fico emocionada até agora. Sabe por quê? Porque eu me senti mais desrespeitada ainda. Como? Como? Era o meu jornal! Você é jornalista como eu. Você defende o seu jornal. Entende? Mesmo que você saiba que ele é o patrão e você é o empregado. Você defende o seu jornal, você gosta dele! E aí, quando eu vi, ditabranda, eu falei... Meu Deus, eles ficaram loucos."

- "Eu fiquei muito triste... É como se a gente tivesse sendo punida de novo. Entende? Desrespeitada de novo. E eu já falei isso pra você, né? Que eles, os torturadores, riam de mim porque eu tinha leite, porque sangrava. E era mais ou menos rir de novo. Alguém rindo da minha história..."

sábado, 4 de abril de 2009

Maquiagem na informação

Não sei se vocês se lembram de uma propaganda feita para a Folha de São Paulo, anos atrás. Era muito bem feita. Um primor de criatividade. Um narrador dava informações positivas a respeito de uma pessoa e um rosto ia lentamente se desenhando no vídeo. No fim, aparecia a sinistra figura de Hitler. E o narrador completava: "É possível contar um monte de mentiras, dizendo só a verdade. Por isso, é preciso tomar muito cuidado com a informação no jornal que você recebe."
Se você nunca viu ou não se lembra, clique no link abaixo e veja a propaganda:

http://www.youtube.com/watch?v=6t0SK9qPK8M

Porque postei isso ? Porque esta semana vi dois exemplos, um deles na própria Folha, de como algumas 'verdades' podem ser distorcidas para que a notícia seja maquiada e ganhe uma outra conotação. O primeiro foi um anúncio da revista 'Caras', comemorando o segundo lugar de Rubens Barrichello em Melbourne. Como Barrichello estampou um pequeno anúncio da 'Caras' no capacete, a revista resolveu capitalizar. E fizeram o anúncio de página inteira. Dizendo, entre outras coisas, que Barrichello, sim, é o 'cara', porque:

- Foi protagonista, em Melbourne, da primeira dobradinha de uma equipe estreante
- Nenhum outro piloto disputou tantos Gps como ele (273)
- É o quarto piloto com mais pódios na história (63). Ele superou o escocês David Coulthard, que se aposentou no ano passado, e só está atrás de Michael Schumacher (154), Alain Prost (106) e Ayrton Senna (80).
- É o quinto com mais pontos (538). Além de Schumacher (1.369), Prost (798,5) e Senna (614), o piloto da Brawn GP está atrás de Alonso, que tem 554.

Olhando assim, o leitor deve pensar que se trata de um fenômeno das pistas. Mas tudo não passa de um mirabolante jogo de palavras e idéias. Todas as informações são verdadeiras, mas o que se esconde por trás delas revela que Barrichello, na verdade, nunca passou de um piloto medíocre. A análise fria dos números desmonta a propaganda, item por item. Olha só:

-Ser protagonista de uma dobradinha em estréia não é mérito. É sorte. Ainda mais porque o pódio caiu no colo dele, por causa de um acidente que tirou dois carros da corrida. Tipos, estar no lugar certo na hora certa.

- Barrichello é 'interminável' na Fórmula Um mas, a rigor, nunca foi protagonista de nenhuma equipe. E só é 'interminável' porque convém às equipes ter um coadjuvante bonzinho. Daqueles que tiram o pé quando o patrão pede, entende ?

- Quarto com mais pódios. Ok. Acontece que, em 273 Gps, ele venceu apenas 9. Fez apenas 13 poles. E correu 5 anos com uma Ferrari. Isto é ser vencedor ?

- Quinto com mais pontos. Que diferença isso faz ? A história aponta apenas para quem chega na frente. Para os vencedores. E Barrichello não é um vencedor. Sem contar que, no meu ponto de vista, um sujeito que assina contrato com cláusula onde abre mão de vencer não é esportista. É mercenário.

Entenderam o jogo dos números ? O que se esconde por trás deles ?
Então, vamos em frente.

O segundo caso de distorção se deu na coluna de Daniel Castro, na Folha de São Paulo.
Veja bem: não tenho nenhuma procuração para defender a Rede Record. Mas observe como existe realmente (desculpe a rima rica) uma manipulação na informação.

A coluna informa que "após dois meses consecutivos de crescimento na Grande SP, a Record perdeu o embalo e caiu em março." E tenta sustentar a informação através dos números do Ibope:"A emissora, que tinha 7,1 pontos de média diária (7h/0h) em dezembro, subiu para 7,6 em janeiro e para 8,2 em fevereiro. Em março, fechou com 7,7, uma queda de meio ponto, ou 6%."

Espera aí! A notícia aqui é outra! Se a Record tinha 7,1 pontos em dezembro e fechou em março com 7,7 pontos, então houve um crescimento de 6 décimos! Ou não ?? Percebem como o crescimento pode ser tachado tambem como queda ?

E a coluna acrescenta: "A Globo, aparentemente, conseguiu estancar sua queda. Em março, teve média diária de 16,8 pontos, um décimo a mais que em fevereiro. Já o SBT manteve sua curva descendente e a Band, ascendente."

A coluna poderia concluir, então, que no mesmo período, a Record cresceu 6 décimos, e a Globo, apenas 1. Ou não ? Tudo depende de quem você quer atacar. Ou agradar. E porquê Daniel Castro compara os números da Record entre dezembro e março, e os da Globo, entre fevereiro e março ??

E não é tudo! A coluna termina com o seguinte parágrafo:
"Ontem, o programa 'Dia Dia' teve o seu melhor desempenho e ficou um ponto atrás da Globo que exibia o 'TV Globinho'. O programa apresentado por Lorena Calábria, Patrícia Maldonado e Daniel Bork alcançou pico de 3 pontos contra 4 da Globo. As outras emissoras marcavam 5 e 6 pontos - SBT e Record respectivamente. Os dados foram arredondados."

Péra lá, de novo! Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que tem algo de podre no reino da ditabranda. A releitura é a seguinte: A Record ficou em primeiro, com 6 pontos. SBT em segundo, com 5. Globo em terceiro, com 4. E Bandeirantes em quarto, com 3.

Isto posto, clique de novo no link, reveja a brilhante propaganda criada pela agência W/Brasil, do genial Washington Olivetto, e responda: a quem ela se aplica, hoje em dia ?