segunda-feira, 26 de abril de 2010

A primeira vez a gente nunca esquece

Desde que me entendo por jornalista profissional,  sempre trabalhei em televisão. Cheguei a escrever, durante algum tempo, materias para uma revista do interior paulista. Fazia reportagens para o programa e , ao mesmo tempo, escrevia para a  revista. Aliás, o impresso foi minha primeira ambição no jornalismo. Sonhava escrever num grande jornal e, quem sabe, até publicar um livro. O caminho foi desviado por acaso. Em 1988, João Nicolau Torres, que desde sempre deu aulas de jornalismo, amigo de longa data e jornalista de altíssimo gabarito, me apresentou à televisão em Varginha, no sul de Minas. O que deveria ser uma visita despretensiosa se tranformou num convite inesperado e, de repente, lá estava eu realizando o sonho de minha vida: trabalhar numa redação. Era radio-escuta, uma função que, infelizmente, parece ter sido engolida pela instantaneidade da Internet. O radio-escuta era o primeiro a chegar na redação. A ele cabia fazer a ronda (ligar para polícia, bombeiros, hospitais, prefeituras, etc) e filtrar o que poderia se transformar em pauta. Acho que fiquei dois meses como rádio-escuta. Num belo dia um repórter ficou doente, outro não apareceu para trabalhar, outro estava de licença, outro não foi localizado e só sobrou, adivinha quem ? o radio-escuta. O então chefe de reportagem, Paulo Brasileiro, me segurou pelo ombro e disse:
- Raulzão, amanhã é com você. Vai lá em Pouso Alegre e faça uma boa entrevista com o Newtão.
- Beleza! Quem é o Newtão ?
Ele coçou a cabeça e disse:
- Newton Cardoso, pô! Governador de Minas. Conhece não ?
Conhecia sim. E, talvez por isso, comecei a tremer ali mesmo. Mal dormi naquela noite. Mas me preparei como pude. Naquele tempo o santo Google ainda não havia sido concebido. Para pesquisar era preciso fazer telefonemas, fuçar em arquivos empoeirados de jornais, enfim, era bem diferente de teclar algumas palavras e esperar os resultados. Fiz o que pude. Liguei para alguns amigos e políticos, pesquisei e preparei três perguntas infalíveis e demolidoras para o governador. Nao precisava mais do que isso. Três perguntas desconcertantes e o mundo todo estaria comentando sobre aquele reporter topetudo e atrevido que tinha desancado o governador truculento e carrancudo. Foi esse o sonho que sonhei naquela noite. No dia seguinte, lá fomos nós rumo a Pouso Alegre, cidade que tinha a honra duvidosa de receber Newtão. Cabaço que era, imaginava que seria uma entrevista exclusiva, só eu e o governador. Que nada. Quando chegamos, havia dezenas de repórteres, a maioria de rádios da região, esperando por Newton Cardoso. Hoje sei como trabalha e funciona uma boa assessoria política. Quando um governador visita determinada região, já sabe de cor quais assuntos serão abordados, quais repórteres deve privilegiar, quais deve evitar e, principalmente, para qual câmera de televisão deve direcionar o olhar. Mas é claro que naquele dia isso nem me passava pela cabeça. Por isso estranhei quando o assessor de imprensa do governador me procurou. O diálogo foi mais ou menos assim:
- Olá, tudo bem ? Sou o assessor do governador Newton Cardoso. Qual o seu nome ?
- Raul
- Raul de quê ?
- Raul Dias Filho.
- Ok. Olha, Raul, o governador vai chegar em poucos minutos. Onde você acha melhor fazer a entrevista ?
- Eu acho que... bem.... deixa eu ver.... não é melhor perguntar para os outros tambem ? Pode ser aqui mesmo ?
- Claro, claro. Então eu vou colocar ele aqui e você pode comandar a coletiva, tá bão ?
- Tá.
Esse 'tá' saiu tão baixo que ele nem deve ter ouvido. Até porque minha vontade era falar outra coisa, tipos 'comandar a coletiva ?? como assim, cara pálida ? não entende que essa é minha primeira entrevista, logo não tenho experiencia nem capacidade para comandar nada, ainda mais com esse monte de gente em volta ?' Mas nisso o governador já estava chegando. Veio direto em minha direção, sorrindo, e me cumprimentou:
- 'Olá, Raul, tudo bem ? Tenho acompanhado seu trabalho, garoto! Parabéns! Continue assim.'
Puxa vida! O governador me conhecia! Me achei, claro! Naquele momento avaliei até a possibilidade de me candidatar a vereador em Cabo Verde. Mas de onde, afinal, ele me conhecia, se aquela era minha primeira vez com o microfone na mão ? E tudo se clareou. Era isso, pô! O bendito microfone tinha o logotipo da Globo. Eu estava segurando o microfone mais cobiçado pelos políticos brasileiros na época. Por isso estava sendo bajulado. Cair na real demorou poucos segundos. Tempo suficiente para uma inquietação geral. Todos me olhavam, inclusive o governador, esperando pela primeira pergunta. Mas como era a primeira vez, podia deixar que outro repórter abrisse a coletiva. Me virei para um colega do lado e disse: 'Tudo bem,  pode começar.' Ele não pensou duas vezes e lascou exatamente uma das perguntas que eu tinha preparado. Atônito, tentei reagir, mas um foca sofre demais numa coletiva. Ali, decididamente, não é lugar para etiqueta. Você tem que atropelar o cara que está ao seu lado. Perguntar na frente. Mas não estava nem um pouco preparado para isso. E o repórter fez outra das minhas três perguntas. Já muito emputecido e um pouco desesperado, tentei reagir, mas uma repórter baixinha e atrevida saiu na frente e fez a pergunta arrasadora e 'derruba governador' que eu tinha planejado. Newtão não se abalou. Respondeu na boa, olhando o tempo todo para a câmera do meu cinegrafista. E toda hora que terminava uma resposta, olhava para mim, como se dissesse 'vai meu filho, estou esperando sua pergunta!'. Minha mão suava e tremia. Não fiz uma única pergunta. De volta à redação, a editora me fuzilou:
- Raul, não acredito que você gravou duas fitas e não fez nenhuma pergunta ao governador.
- Não... eu até tentei, mas não deu tempo...
- E o que é aquilo ? Você estava com frio ? O microfone tremia o tempo todo!
- Tremia ?
- Tremia.
- É... Tava um frio danado lá.
A entrevista foi exibida. Afinal, como Newtão tinha olhado o tempo todo para nossa câmera, tudo bem. Com um texto gravado pelo apresentador do jornal dando a deixa para algumas falas, a entrevista foi ao ar. Nenhuma das perguntas que eu tinha imaginado, e que foram feitas por outros reporteres, foi exibida. Muito menos as respostas. Nao interessava para a emissora. Muito menos para o governo. Os telespectadores ? Ara, que bobagem! Era um jogo de cartas marcadas. Mas eu não sabia disso. E fiquei com a terrivel  sensação de ter feito a escolha errada.  Minha primeira entrevista tinha sido um fracasso.

Minha segunda entrevista aconteceu um dia depois. Por coincidencia, de novo em Pouso Alegre. E, de novo, com uma figura desconcertante. Logo eu conto como foi.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um certo Jacinto

Outro dia fiz uma reportagem sobre moradores de rua. Aliás, pra ser justo, peguei carona num brilhante trabalho de garimpagem feito pelo produtor Lúmi Zúnica. Ele se disfarçou de mendigo e descobriu que contrabandistas estavam usando os moradores de rua para lavar dinheiro. Usavam, na verdade, a identidade dos mendigos para trocar dólares por reais ou enviar dinheiro para o exterior. E Zúnica viveu entre eles durante três semanas. Nesse tempo, descobriu muita coisa, além da pilantragem dos contrabandistas. Encontrou e conheceu pessoas que jamais imaginamos morar nas ruas. Ele me contou sobre um certo 'Jacinto' que conheceu no abrigo. O cara falava fluentemente português, inglês, italiano, espanhol, árabe e até alguns dialetos indígenas. Conhecia a amazônia brasileira, peruana, venezuelana e colombiana, além de paises europeus e asiáticos. Disse que conheceu e foi amigo de Negro Acácio, um dos comandantes das Farc's (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Jacinto tem brevê de aviador. Contou que era dono de um Cessna 210. E que ele mesmo, e só ele, pilotava o avião. Zúnica me contou que, numa das conversas que tiveram, Jacinto falou com propriedade sobre as Cruzadas, a inquisição, a vida monástica de Santo Antão e tambem sobre os grandes homens da humanidade, como Sakyamuni ou Siddhartha Gautama, o primeiro Buda. Esse cara, o Jacinto, que sabe tanto da vida e de tantas outras coisas, vive nas ruas de São Paulo. O que o terá arrastado pra lá ? Zúnica não sabe. Jacinto se recusou a falar sobre isso. Mas ele deve ter sofrido um golpe e tanto. Como todos os outros treze mil que vivem nas mesmas condições em São Paulo. Treze mil! É como se toda a população de uma cidade como Cabo Verde, por exemplo, vivesse nas ruas. E existem muitos 'Jacintos' entre eles. Como um ex-lutador de vale-tudo que já ganhou milhares de dolares nos ringues. Ou um marroquino formado em Artes na USP. Pessoas que foram de tal forma espancados pela vida que preferiram se deitar na vala comum dos marginalizados. Preferiram o anonimato das ruas. Não têm mais nome, nem rosto, nem passado. Passam por nós como se fossem sombras. Daquilo que já foram um dia. Nem sonhar, sonham. Zúnica me disse os quartos dos abrigos da prefeitura são divididos por até 80 pessoas por noite. E que é dificil dormir, por causa dos gemidos e lamentos. O sono dos moradores de rua é povoado por pesadelos. Até as boas lembranças são cruéis, porque evocam pessoas e situações que, provavelmente, nunca mais farão parte da vida deles. Talvez seja por isso que vagam sem destino. Porque perderam a mola mestra da vida. Aquilo que costumamos chamar de esperança.

A reportagem sobre o esquema criminoso que usava moradores de rua como laranjas está logo abaixo. Espero que gostem.

                                        

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Certas crônicas que leio...

Sabe aquela música de Milton Nascimento ?

"Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece:
"Como não fui eu que fiz?!"

Pois assim como o genial Milton, tambem sou assaltado, vez por outra, por uma sensação parecida. Não em relação à alguma música, claro, até porque canto mal toda vida. Acontece quando vejo uma reportagem que gostaria de ter feito. Ou um texto que gostaria de ter escrito. Não tem nada a ver com inveja. Nem frustração. É simplesmente admiração por aquilo que outros conseguem traduzir de uma forma diferente. E, muitas vezes, melhor do que a gente. Então! Depois de escrever o último post, sobre pedofilia na igreja, fui apresentado à uma crônica sobre o mesmo assunto, assinada pelo inigualável Luis Fernando Verissimo. Gostaria de tê-la escrito, tambem. E, humildemente, a repasso a vocês. Deleitem-se.

O último círculo

Por Luis Fernando Verissimo - O Estado de S.Paulo

Certos fatos são como os círculos concêntricos que se formam quando a proverbial pedra cai no proverbial lago. Têm um significado imediato e têm as conotações que se alastram, com significados cada vez maiores. Essa questão dos padres pedófilos, por exemplo. No seu centro há o drama individual de um homem e sua compulsão doentia, e das suas vítimas. O significado seguinte é o da condição antinatural do homem, obrigado ao celibato ou condenado à hipocrisia, que se vale da presunção de inocência que o voto de castidade lhe dá para praticar seu vício. Outro significado maior é o do poder que a religião tem sobre seus fiéis, para o bem ou para o mal, expressa na imagem do pastor guiando seu rebanho, mas sem nenhuma garantia do caráter do pastor. E se você quiser continuar seguindo estes círculos sucessivos de implicações fatalmente chegará à neurose sobre o sexo que está na base de toda ideia de clausura e renúncia às tentações da carne, e - o círculo seguinte - na base da nossa civilização. A demonização do sexo e a misoginia são constantes da cultura judaico-cristã e o islamismo não fica atrás, com suas regras de abstinência e sua sonegação à vista pública de qualquer parte do corpo feminino. O celibato protege o padre do contágio do mal pelo contato com a mulher, descendente de Eva, a primeira desencaminhadora. Os padres pedófilos, com sua preferência por meninos, poderiam muito bem alegar que sucumbiram a demônios menores. O último dos círculos irradiados tem a ver com a Igreja e seus costumes, como a demora em reconhecer seus erros. Entre o acobertamento e a omissão, a hierarquia da Igreja tem muito a ver com os crimes praticados por seus sacerdotes, que destruíram a vida de tanta gente. Mas nada disto afetará sua majestade. Ela sobreviveu à Inquisição, à perseguição aos judeus, à resistência obscurantista a todas as revelações da Ciência e à cumplicidade com tiranos, e pediu desculpas. Ainda hoje dita o comportamento sexual de milhões de pessoas, apesar da sua posição retrógrada na questão dos anticoncepcionais, mas um dia pedirá desculpas por isto também. E pela sua responsabilidade nas vidas destruídas. O que é eterno não precisa ter pressa.

fonte O ESTADO DE S PAULO

Para aqueles que bebem Milton, nada melhor do que uma certa canção com certas imagens da eterna fonte de onde só brota poesia.

 

terça-feira, 6 de abril de 2010

O sexo dos anjos

Tempos atrás, fiz reportagens sobre pedofilia em duas cidades amazonenses. Em Tefé o acusado era um juiz. Em Coari, um prefeito. Esta semana trabalhei em outros casos, que envolvem padres e crianças. Qual a diferença entre elas ? Apenas o disfarce usado pelos pedófilos. Enquanto um se esconde atrás de uma toga, outro usa paletó e gravata. E os ultimos, batinas. Em comum, o fato de se aproveitarem de cargos, posições e circunstâncias para roubar a infância de inocentes e abalar a estrutura de muitas famílias. Um tipo de crime que, quando cometido por um padre, adquire outra dimensão. Quando alguem escolhe uma religião, imediatamente cria, mesmo inconscientemente, uma relação de dependência espiritual com aqueles que dirigem a igreja. Sejam eles padres, pastores ou rabinos. O caráter dessas pessoas nunca é colocado em dúvida e elas acabam se tornando, para a família, modelos de comportamento. E conquistam a confiança dos pais. Quando esta confiança é traída de uma maneira tão mesquinha e perversa, o mundo, para estes pais, desaba. O depoimento da mãe de um menino de Rio Claro, abusado por um padre que dirigia um colégio claretiano, está entre os mais comoventes que já gravei. Uma coisa é ver esse depoimento na tv, com a mãe escondida por uma penumbra e com a voz distorcida. Recursos usados para preservar a identidade da mãe e, principalmente, da criança. Outra coisa é estar frente a frente, olhando nos olhos, percebendo as lágrimas que rolam a todo instante, as pausas na fala, o soluço incontido, enfim, imaginar a dor que um coração de mãe consegue suportar. Em um determinado trecho que não foi ao ar, ela me explicou como percebeu os sinais enviados pelo filho, que tinha nove anos de idade. Alguns foram literalmente descritos através de desenhos, feitos no caderninho da escola. Ela contou que "os desenhos dele eram sempre matando, sempre passando a faca no pescoço de alguém, sempre tinha gotas de sangue. E um determinado desenho me chamou a atenção... ele fez um cavaleiro com um revólver na mão e o revólver apontava para o pênis do homem deitado no chão. As balas saíam do revólver e batiam ali..." Não consigo imaginar a dor, a revolta e a indignação dos pais ao ouvir algo assim. E ao descobrir que os agressores são justamente aqueles que deveriam oferecer proteção e afeto aos seus filhos. Quem consegue ficar indiferente ? O alto clero da igreja católica ficou. A mesma mãe de Rio Claro me disse que jamais foi procurada por alguem da igreja catolica ou do colégio claretiano: "nunca perguntaram se nós estávamos precisando de ajuda, se as crianças estavam precisando de ajuda, como estava o psicológico... O que fizeram na época foi escrever uma matéria nos chamando de mentes insanas, de mulheres loucas, de psicopatas. Acobertaram." Durante anos, ou séculos, foi esta mesma cumplicidade, a do silêncio permissivo, que permitiu que criminosos de batina abusassem de crianças. Um padre condenado a 16 anos de prisão por pedofilia, em duas instâncias, ainda está nas fileiras da igreja. Ainda ostenta o título de padre. E ainda pode destruir a vida de outros inocentes. Entre dogmas que remetem à pré-história e a proteção incondicional a seus sacerdotes, a igreja católica continua pecando pelo acobertamento, omissão e conivência. O preço, um dia, será cobrado.

As fotos que ilustram este post não foram escolhidas por acaso. Elas foram tiradas numa vila do Iemen. Eu e Henry Ajl estavamos caminhando por uma viela quando encontramos um grupo de crianças. Henry parou para fazer imagens e, logo depois, um menino surgiu conduzindo um jumento. Ele ficou tão encantado com a câmera de Henry que parou ali por longos minutos. O pai dele o chamava insistentemente para seguirem em frente e o menino nem ouvia. O olhar de encantamento dele me encantou tambem. Transmite inocência, pureza, fragilidade. Tudo aquilo que, imagino, os anjos tambem carregam no olhar.   

A reportagem completa, exibida pelo Domingo Espetacular, mostra outros casos, além de Franca e Rio Claro. Para assistir, basta clicar no vídeo abaixo: