quarta-feira, 7 de abril de 2010

Certas crônicas que leio...

Sabe aquela música de Milton Nascimento ?

"Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece:
"Como não fui eu que fiz?!"

Pois assim como o genial Milton, tambem sou assaltado, vez por outra, por uma sensação parecida. Não em relação à alguma música, claro, até porque canto mal toda vida. Acontece quando vejo uma reportagem que gostaria de ter feito. Ou um texto que gostaria de ter escrito. Não tem nada a ver com inveja. Nem frustração. É simplesmente admiração por aquilo que outros conseguem traduzir de uma forma diferente. E, muitas vezes, melhor do que a gente. Então! Depois de escrever o último post, sobre pedofilia na igreja, fui apresentado à uma crônica sobre o mesmo assunto, assinada pelo inigualável Luis Fernando Verissimo. Gostaria de tê-la escrito, tambem. E, humildemente, a repasso a vocês. Deleitem-se.

O último círculo

Por Luis Fernando Verissimo - O Estado de S.Paulo

Certos fatos são como os círculos concêntricos que se formam quando a proverbial pedra cai no proverbial lago. Têm um significado imediato e têm as conotações que se alastram, com significados cada vez maiores. Essa questão dos padres pedófilos, por exemplo. No seu centro há o drama individual de um homem e sua compulsão doentia, e das suas vítimas. O significado seguinte é o da condição antinatural do homem, obrigado ao celibato ou condenado à hipocrisia, que se vale da presunção de inocência que o voto de castidade lhe dá para praticar seu vício. Outro significado maior é o do poder que a religião tem sobre seus fiéis, para o bem ou para o mal, expressa na imagem do pastor guiando seu rebanho, mas sem nenhuma garantia do caráter do pastor. E se você quiser continuar seguindo estes círculos sucessivos de implicações fatalmente chegará à neurose sobre o sexo que está na base de toda ideia de clausura e renúncia às tentações da carne, e - o círculo seguinte - na base da nossa civilização. A demonização do sexo e a misoginia são constantes da cultura judaico-cristã e o islamismo não fica atrás, com suas regras de abstinência e sua sonegação à vista pública de qualquer parte do corpo feminino. O celibato protege o padre do contágio do mal pelo contato com a mulher, descendente de Eva, a primeira desencaminhadora. Os padres pedófilos, com sua preferência por meninos, poderiam muito bem alegar que sucumbiram a demônios menores. O último dos círculos irradiados tem a ver com a Igreja e seus costumes, como a demora em reconhecer seus erros. Entre o acobertamento e a omissão, a hierarquia da Igreja tem muito a ver com os crimes praticados por seus sacerdotes, que destruíram a vida de tanta gente. Mas nada disto afetará sua majestade. Ela sobreviveu à Inquisição, à perseguição aos judeus, à resistência obscurantista a todas as revelações da Ciência e à cumplicidade com tiranos, e pediu desculpas. Ainda hoje dita o comportamento sexual de milhões de pessoas, apesar da sua posição retrógrada na questão dos anticoncepcionais, mas um dia pedirá desculpas por isto também. E pela sua responsabilidade nas vidas destruídas. O que é eterno não precisa ter pressa.

fonte O ESTADO DE S PAULO

Para aqueles que bebem Milton, nada melhor do que uma certa canção com certas imagens da eterna fonte de onde só brota poesia.

 

6 comentários:

  1. Sem fazer comparações, pois são desnecessárias, ambos são brilhantes...

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  2. Raul,
    Mais uma vez parabéns pela última matéria do Domingo Espetacular!
    Sempre percebo, embora você, às vezes, tente disfarçar, que dependendo da matéria você não consegue se manter distante. Claro, afinal você, antes de ser um repórter, é um ser humano, com sentimentos e tudo mais que nos é pertinente. Veja, estou falando de seres normais, uma vez que não podemos nos esquecer das exceções. Suas matérias sempre permitem, que,de alguma forma, lembremos de algum fato já conhecido e, também, de nos colocarmos na posição das pessoas que passaram pelos problemas.Enfim, acho suas matérias excelentes e muito profissionais e com a dose certa de envolvimento do repórter em cada uma delas. Parabéns!

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  3. Raul, você como sempre se revelando! Mesmo quando o assunto é podre como a história da pedofilia dos padres católicos, a mensagem que nos passa são as exatas atitudes na medida certa, diante da impotência que sentimos.
    Aquele arremedo de padre que você entrevistou (que nojo!)deveria ter vergonha de te encarar.
    Parabéns pelo seu caráter!!!

    Sua fã n° zero!
    Cássia - Viçosa/MG

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  4. Oi Raul,
    Agora vou pedir licença e dar meu pitaco novamente aqui em seu blog.
    Não concordo com você sobre a crônica ser melhor do que o seu post, te explico porquê:

    Você tem razão em dizer inigualável Verissimo e ele é! Lendo a crônica achei o máximo a comparação com os círculos d'água e suas dimensões. Tudo o que ele escreve sobre a igreja, pedofilia e as comparações bem colocadas sobre outras religiões.
    Mas.. te confesso que me senti mais envolvida e me fez refletir muito mais sobre o assunto lendo o seu post.
    Claro que Você estando ali frente a frente com o padre, a mãe da criança , o contato direto com toda a situação e emoções dificilmente consegue se afastar e ser imparcial a tudo...e eu nem acredito que exista um BOM repórter que consiga fazer isto.
    O diferencial Raul é a forma como você verbaliza e escreve. Coloca sentimentos, mostra detalhes com delicadeza, respeito e me arrisco até em dizer com uma certa fragilidade.
    Tudo isso junto em um texto faz com que o leitor se envolva, desperta sentimentos de raiva, nojo, alegria, enfim, faz a gente sentir um pouco como é estar alí vivendo a situação.
    Vou te dar alguns exemplos :
    - "olhando nos olhos, percebendo as lágrimas que rolam a todo instante, as pausas na fala, o soluço incontido, enfim, imaginar a dor que um coração de mãe consegue suportar"
    - "feitos no caderninho da escola".
    - "Não consigo imaginar a dor, a revolta e a indignação dos pais ao ouvir algo assim"
    - "O olhar de encantamento dele me encantou tambem. Transmite inocência, pureza, fragilidade."

    Acho que não preciso escrever mais nada né? ahhh.. preciso sim! Inigualável Raul!

    beijo
    Regiane

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  5. Anda sem tempo? Você precisa atualizar o seu blog. Faz tempo que não dá notícias.

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  6. Raul, você é uma criatura iluminada mesmo. Adoro essa canção do Milton, aliás não tem como não gostar de um cantor, cujas canções, lindas, toquem tão fundo em nossos corações.

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