segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Paratodos

"O meu pai era paulista
meu avô pernambucano
o meu bisavô, mineiro
meu tataravô baiano..."

O versos iniciais de 'Paratodos', do genial Chico Buarque, mostram bem o caldeirão multiracial em que vivemos. Embora tenha nascido em berço esplêndido (o pai era historiador e a mãe, pintora e pianista) Chico jamais revelou qualquer simpatia pelo preconceito. Muito pelo contrário. Ele já incorporou, em suas canções, vadios e miseráveis. Já foi o guri que rouba nos semáforos e a biscate que gosta de apanhar. E exatamente por se sentir parte destes vários ´Brasis´, Chico é um exemplo a ser seguido. Mas nem todos se miram nele. Alguns acontecimentos recentes mostram que, ao contrário de Chico, muitos brasileiros estão aprendendo a enxergar através das lentes do preconceito e da intolerância. Primeiro foi uma garota chamada Mayara Petruso, estudante de Direito, que postou no Twitter uma mensagem culpando os nordestinos pela vitória de Dilma Roussef.




A mensagem ganhou eco na Internet e logo apareceram algumas mentes insanas para apoiar a moça. No rastro do ódio destilado pelos intolerantes surgiu tambem um sujeito em Santa Catarina, comentarista da RBS, afiliada da Globo, que vomitou preconceito contra os pobres. Ao vivo e em cores. Para o fascista, os pobres são responsáveis pelos acidentes de trânsito. E o governo é culpado por ter permitido o acesso dos ´miseráveis´ a estes bens de consumo.

Se você tiver estômago, assista a performance abaixo:




Talvez incentivados pelos exemplos da estudante paulista e do comentarista gaúcho, um grupo de jovens de classe média em São Paulo resolveu agredir alguns rapazes que passavam pela calçada. As imagens da agressão foram gravadas por cameras de segurança. Veja abaixo.



Os pais dos agressores disseram que tudo não tinha passado de uma briga banal. E que os 'meninos' reagiram porque tinham sido 'cantados' pelos rapazes. Apesar das imagens desmentirem a versão dos pais, a justiça se apressou em liberar os agressores. Aliás, é incrível como a justiça age com rapidez quando se trata de libertar ou inocentar filhos de pais abastados. Age assim para poucos. Deveria ser para todos. Aliás, em nenhum destes casos, os agressores sofreram qualquer tipo de punição.


Mas assim, com bad-boys e old-boys, temos três agressões em sequência. Será que foi coincidência ? Ou será que uma nova geração, racista e homofóbica, está mostrando a cara ? Afinal todos os personagens têm pontos em comum. Estudam ou estudaram em colégios caros. Estão acostumados a passar férias no exterior. E só se sentem bem enquanto estão nos seus quadrados. Afinal, nos quadrados deles todos são ´iguais´. Por isso não suportam os 'diferentes'. E os 'diferentes' são todos aqueles que estão numa escala abaixo daquela que eles estabelecem como padrão: a condição social. Todos aqueles que são mais pobres do que eles são considerados inferiores. Para não passar em branco pela vida estes 'iguais' encontram amparo no preconceito, no ódio e na intolerância. Como diria Chico Buarque, vão morrer na contramão. Atrapalhando o tráfego.

Finalizando, para os amigos de bar, uma boa dose de Chico Buarque! De graça e para todos.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A tragédia silenciosa

Amigos de bar, mais uma vez o balcão ficou vazio por um tempo. Menos mal que só eu me ausentei. Porque, apesar do boteco ter ficado desatualizado, os amigos continuaram frequentando o pedaço. Obrigado mesmo, de coração, pela presença. E entendam, meus caros, que o silêncio faz parte da mineiridade. De vez em quando, períodos de quietude são necessários. Para acalmar a alma e sossegar o facho. Mas chega de filosofia barata. Vamos ao que interessa. Esta semana, no programa Domingo Espetacular, foi exibida uma reportagem sobre um tema muito delicado: a morte de crianças indígenas em aldeias brasileiras. A matéria foi fruto do trabalho incansável do produtor Ricardo Madureira e da edição impecável de Cristiane Massuyama. Mas antes de falar sobre a reportagem, permitam-me um devaneio. Durante anos trabalhei em um programa, veiculado pela Globo de Campinas, que aborda temas como conservação e meio ambiente. Para fazer as reportagens, estive inúmeras vezes na Amazônia. E conheci muitas aldeias indígenas. Este contato com os índios continuou na Record. Quando fiz a reportagem sobre a queda do avião da Gol, por exemplo, foi com a ajuda dos índios, liderados pelo cacique Megaron Txucarramãe, que entrei na área onde estavam os destroços. E já contei aqui no blog tambem como foi bacana conhecer os Iawanawas, nos confins do Acre. Mas confesso que um detalhe sempre me intrigou. Em todas as aldeias que estive, e não foram poucas, jamais vi um índio portador de deficiência (física ou mental). Ou cego. E então pensava com meus botões: 'poxa, como a natureza é sábia. Ela coloca os índios num ambiente hostil mas, ao mesmo tempo, os capacita com o privilégio de não terem deficiências tão comuns ao homem branco'. Agora, depois de alguns meses trabalhando nesta reportagem, descobri que minha avaliação estava completamente equivocada. E era ingênua. Nascem, sim, muitos portadores de deficiências nas aldeias brasileiras. Talvez até mais do que nas cidades, por causa da consanguinidade. Como a população das aldeias é relativamente pequena, parentes proximos entre si acabam se relacionando. O que acontece é que, em muitas destas aldeias, as crianças que nascem com algum tipo de deficiência são mortas. Assim como filhos de mães solteiras, gêmeos, albinos e cegos. Todos são eliminados. Alguns, logo que nascem. Outros, assim que as deficiências ou doenças dão os primeiros sinais. Os gêmeos são mortos porque, segundo a cultura indigena, são frutos de um espírito mau. Algumas etnias matam os dois bebes. Outras matam somente o segundo bebê. Ainda segundo a tradição, para que os maus espiritos não se espalhem pela terra, o último suspiro não pode ser dado ao ar livre. Então, as crianças são afogadas ou enterradas vivas. Existem cerca de duzentos povos indígenas no Brasil. E pelo menos vinte ainda praticam esta perversa tradição. Para fazer a reportagem, estive no Mato Grosso, Paraná e Brasilia. E conheci alguns personagens desta tragédia silenciosa. Pessoas que carregam o estigma de sobreviventes, porque estiveram marcados para morrer. Alguns chegaram a ser enterrados. Foi comovente ouvir o relato de pessoas que arriscaram a vida para salvar pequenos índios condenados. Por quebrar a tradição, estes heróis anônimos foram condenados ao exílio. E vivem longe de suas aldeias. É um erro grave imaginar que os índios não sofrem quando uma criança é morta. Muitos pais preferem se matar, em vez de ver a morte dos proprios filhos. Um grito silencioso de socorro ecoa nas aldeias. E as autoridades se calam. Ninguem da Funai se prontificou a gravar entrevista. Além disso, muitos antropólogos defendem a tese de que não se deve interferir nestas práticas, porque 'a cultura do índio deve ser preservada'. Alguns acham que os índios fazem isso por conveniência. Outros entendem que a prática é, na verdade, uma seleção 'natural' para escolher os mais 'aptos' a sobreviver na selva. Imagino que, entre outras teses, defendam tambem o apedrejamento de mulheres e a mutilação de meninas em paises muçulmanos. Enquanto a sociedade debate, e as autoridades se calam, crianças ainda são mortas em nome da tradição.


A foto que abre o post mostra a índia Muwajii com a filhinha Iganani nos braços. Nesta época elas ainda viviam entre os suruarrás, no sul do Amazonas. Algum tempo depois, Iganani começou a demonstrar sinais de uma doença que mais tarde seria diagnosticada como paralisia cerebral. Foi quando a tribo exigiu a morte de Iganani. Para não matar a própria filha, Muwajii fugiu da aldeia. Hoje ela vive com a filhinha, que é linda, numa Ong em Brasília. Muwajji é uma das personagens desta história. Que acontece desde sempre no Brasil. E desde sempre é ignorada pela imprensa e pela imensa maioria dos brasileiros.

A reportagem completa você pode assistir clicando abaixo.