quarta-feira, 1 de abril de 2009

Ecos da Ditadura

Durante 21 anos, o Brasil viveu sob um regime ditatorial. Que hoje alguns chamam de 'regime de exceção'. No começo da década de 70, quando o regime endureceu, eu ainda era criança. Mas me recordo de algumas coisas. Como da obrigação de cantar o hino nacional, de frente para a bandeira, todas as manhãs, no pátio do escola. Me lembro que, durante o inverno, todos ficavam tremendo de frio. Me lembro também do medo que todos em Cabo Verde (minha cidade natal, em MG), principalmente as crianças, sentiam dos terroristas. Terrorista, para mim, era muito pior do que bicho-papão e mula sem cabeça. Realmente, a propaganda oficial trabalhava bem no interior do País... E continuou trabalhando bem durante décadas, porque demorou um bocado para eu descobrir que os 'terroristas' eram, na verdade, brasileiros que lutavam contra um determinado regime. Acho que este capítulo nefasto da história brasileira ainda não é bem contado nas escolas e colégios. Aliás, nem sei se é contado. Semana passada, tive, pela primeira vez, contato direto com pessoas que sofreram nos porões da ditadura brasileira. E os relatos me impressionaram muito. Os personagens que conheci contaram, em detalhes, como foram presos. E o que passaram nas prisões. Uma destas pessoas se chama Ieda Seixas. Ela tem hoje 61 anos. Tinha 22 quando foi presa, com toda a família, no outono de 1971. O crime de Ieda era o de ser filha de Joaquim Alencar de Seixas, um mecânico que contestava o regime militar. Joaquim foi preso no dia 16 de abril e morto, sob tortura, um dia depois. Ieda continuou na prisão por mais dezoito meses. Transcrevo abaixo trechos da entrevista que Ieda me concedeu. Memórias que falam de dores, perdas e escuridão.

– "Fiquei um ano e meio presa, como a minha irmã também ficou, e nós não éramos nem militantes. Passei quase um mês na Operação Bandeirantes me sentindo aquela judia de campo de concentração. Tomaram tudo o que era nosso, tudo. As alianças, as jóias, os livros. Tudo foi tomado da gente. Em nome do quê? Da segurança nacional? Desde quando que o meu livro de faculdade atentava contra a segurança nacional? Não, não. Isso eu não admito. E o ódio que eu tenho de alguém que escreve que a ditadura foi branda ela extrapola. Extrapola. Extrapola!"

- "Me separaram da minha mãe e da minha irmã e me colocaram num banheiro... Era um banheiro comprido que tinha um chuveiro que tinha um saco amarrado porque estava vazando. Uma pia no canto e uma cama que era só uma tela e um cobertor. E eu fiquei ali alguns minutos e depois entraram vários homens. Eu me lembro que um sentou na minha frente e ele batia na minha cara... E até hoje eu não entendo porque que ele batia tanto na minha cara. Aí sentou um sujeito do meu lado que eu não sei quem é. E lembro que do outro lado sentou um sujeito chamado Davi dos Santos Araújo, que é um delegado do DEIC, da policia civil. E esse homem achou por bem abusar sexualmente de mim."

-"Me doparam para tirar o corpo do meu pai de lá de dentro. E me deram, me deram um copo com leite. Eu não sei o que continha. Eu sei que era extremamente doce e me deram... Eu apaguei e acordei só no outro dia. E foi exatamente no dia, na noite que tiraram o corpo do meu pai... Meu pai morreu no dia dezessete, seis horas da tarde. Porque a minha mãe viu e ouviu ele morrer. E viu jogarem o corpo dele dentro do camburão."

- "A dor física passa, a dor na alma não. A única coisa que esses desgraçados não tiraram de mim foi a dignidade e a alegria... (Ieda chora) Embora eu chore quando falo desse assunto. E vou chorar sempre. Porque eu não sei o que se passou na cabeça do meu pai enquanto ele estava sendo torturado e sabendo e ouvindo a voz da gente ali. Porque eu sei onde ele estava naquele momento, e ele ouviu a voz da gente. E o meu pai era uma pessoa dedicada à família. Então pra ele deve ter sido muito duro saber que os filhos estavam presos, que as filhas dele estavam presas. Ele ouviu a nossa voz."

-"Eu ouvi... vi e ouvi um menino que deveria ter uns treze anos, que eu não sei quem é, ser torturado. Eu vi esse menino no pátio e depois eu vi ele subir e ele foi torturado e morto. E nós já reviramos todos os documentos. Não se sabe quem é... ele devia ter uns treze anos. Porque era muito franzino, sem barba, uma criança. E torturaram esse menino até a morte."

- "Aonde você estava quando a luz apagou ? Quando a luz apagou nesse país eu sei que eu fiquei no quarto escuro. Eu não fiquei na casa grande, na sala grande não. Porque podem se passar mil anos, se eu vivesse, os gritos estão na minha cabeça. Porque independente do que fizeram comigo, o grito daquelas pessoas, daqueles jovens, velhos, mulheres que foram torturadas enquanto eu estive na Operação Bandeirantes, eles nunca vão sair da minha cabeça."

Um comentário:

  1. Esses relatos me impressionam,embora não estar vivendo algo tão terrivel assim.Vivemos numa democracia que nos impede de dizer o que pensamos,como educar nossos filhos,...quando acho que encontrei as respostas sempre aparece uma pergunta nova que não consigo responder, e voce Raul sente-se sufocado as vezes com tanta informação que apesar de expressa-las no blog poderia talzez fazer algo mais que não deixam.

    Julia,
    14/11/2011.

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