quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

João Pacifico

Durante as férias ouvi algumas modas antigas de viola. Gosto muito. Desde criança me acostumei a ouvir no rádio e na vitrola que papai tinha na 'venda'. 'Venda', no interior de Minas, é um empório onde se vende de tudo. E papai tinha uma, antes de comprar um caminhão para transportar leite para o laticínio de Cabo Verde. Aprendi a dirigir bem cedo, para ajudar papai na linha de leite. Como ainda era um garoto, não conseguia levantar os latões. Então, nas estradas de terra, eu dirigia e papai ia na carroceria, recolhendo o leite deixado nos pontos pelos sitiantes e fazendeiros. Na cabine do caminhão, enquanto dirigia, eu ouvia as modas no toca-fitas. E jamais imaginava que, um dia, teria a chance de conhecer pessoalmente algum daqueles cantores ou compositores que ouvia. Felizmente, o jornalismo me proporcionou esse privilégio. Me lembro que, em 1998, ainda em Campinas, sugeri uma entrevista especial com João Pacífico, que estava na cidade. Claro que a redação inteira me olhou com uma interrogação na testa. Nunca nenhum deles havia ouvido falar em João Pacifico. Era compreensível, porque João Pacífico não era cantor. Era compositor. Portanto, desconhecido pelo grande público. Mas ele compôs algumas das principais obras primas da musica caipira. Escreveu, em parceria com Raul Torres, clássicos como 'Chico Mulato' e 'Cabocla Teresa'. Depois de devidamente 'apresentado' à redação, a pauta foi aprovada e lá fui eu ao encontro de João Pacífico. Ele já tinha 89 anos e impressionava pela lucidez e bom humor. Já no final da entrevista, na verdade mais uma boa prosa que uma entrevista, perguntei se ele tinha, entre todas as músicas, alguma que mais lhe agradava. João disse que não, que as músicas eram como filhos. Todos são queridos e igualmente amados. Mas, colocando a mão no meu braço, disse que tinha um versinho que gostava de declamar, e perguntou se eu queria ouvir. 'Mas é claro', respondi. E um dos maiores compositores da musica caipira declamou assim, com uma voz e um ritmo inigualáveis:


"Um fiozinho d' água
desviou de um riacho
Veio vindo serra abaixo
e passou no meu pomar
Encontrou uma pedra,
ficou sua companheira
Brincaram de cachoeira
e aqui ficaram pra morar.
Hoje, da minha janela,
eu contemplo a cachoeirinha
Que ficou minha vizinha
desde que a vi nascer
Seu murmúrio doce
é um verdadeiro canto
É quem me serve de acalanto
para eu adormecer."

Quando terminou, olhou pra mim e perguntou: 'Gostou ?' Eu estava emocionado demais para responder. Mas 'seo' João sabia que eu havia gostado. Tanto que brindamos com uma cachaça da boa, que ele adorava tomar nos finais de tarde. Creio que foi a última entrevista de João Pacífico. Ele morreria no final daquele ano. Infelizmente não tenho a gravação com a entrevista que fiz, mas encontrei no Youtube um vídeo onde João Pacifico declama o mesmo poema. Com a maestria e doçura que só os poetas conseguem ter.
 

4 comentários:

  1. Oi Raul!!! Difícil não se emocionar com versos tão lindos.
    João Pacífico era com certeza um homem simples, mas dono de extrema sensibilidade e sabedoria.
    Sorte sua ter tido o privilégio de conhecê-lo e sorte nossa ter você, meu amigo, que compartilha conosco essas coisas tão belas.
    Fica com Deus, mestre.
    Beijo procê

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  2. Nossa, Raul, que coisa boa de se ler! Deu até um nó na garganta.
    Mas você quando some, sempre volta com algo que nos acrescenta muito: amor, simplicidade, respeito, carinho, fraternidade e sobretudo uma humildade sem limites!
    Continue sempre assim.

    Beijo!!!

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  3. Cada dia se superando mais hen,parabéns caríssimo amigo.

    Ate mais.

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  4. Raul,
    Sua história é simples e bonita. Só quem é do interior sabe o quanto é bom ouvir uma moda de viola de raiz. Ela nos dá a certeza de que viver de maneira simples ainda é o melhor jeito de ser feliz. Somos remetidos às nossas origens, a melhor versão de nós mesmos, despidos de disfarces e máscaras. Nossa essência. É uma pena que o trabalho, a sociedade, as obrigações, responsabilidades nas cidades grandes, vão 'matando' , aos poucos, nossa simplicidade e o que temos de mais puro, nossas raízes. Poucos são aqueles que ainda conservam os seus sotaques e naturalidade. Quando notamos já nos distanciamos tanto deles e nem mais nos reconhecemos. Ficamos artificiais e incompletos.Por isso, sempre que possível trilhamos o caminho de origem. Voltamos aos nossos pedacinhos de chão. Reconhecemos a paisagem familiar, sentimos o aroma da terra molhada, o cheiro de café torrado no ar e gravamos na memória a imagem do verde das montanhas mesclado ao amarelo dos ipês, dando um colorido especial ao cenário. São lembranças simples e ficarão para sempre em nossos corações. Mas, com certeza, nos abraços calorosos das pessoas queridas e humildes é que relembramos quem verdadeiramente somos. Acho que os idosos de Poços de Caldas já descobriram que um jeito de ser feliz é ter saúde e poder dançar aos sábados e domingos ao redor do Coreto da Praça. Algo simples que os deixam felizes! Precisamos de muito pouco!
    Abraço,

    Valéria

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