segunda-feira, 17 de maio de 2010

O primeiro 'furo' a gente nunca esquece...

Tudo que é bom, dura pouco. O ditado é batido, mas verdadeiro. E foi bem isso que aconteceu comigo lá pelos idos de 1989. Como contei nos posts anteriores, depois de pegar o gostinho pela rua, a minha fase ´repórter´ terminou bruscamente. Bastaram aquelas duas entrevistas. E os repórteres da tv de Varginha que tinham estado doentes, ausentes ou sido abduzidos, voltaram. E lá fui eu de volta para a rádio-escuta. Ali eu falava com muita gente, todos os dias. Durante a ronda, ligava pra tudo que é prefeitura, delegacia, hospital, posto da PM, rádios, enfim, tinha um repertório imenso de fontes. Gente que eu só conhecia por telefone. Mas como falava com todos, todos os dias, acabei ficando amigo da maioria. Me lembro que, na época, até tinha escapado de uma multa porque 'conhecia' o guarda rodoviário. E essa cumplicidade com os contatos me ajudou demais da conta quando surgiu a oportunidade de mais uma matéria. Aqui tambem cabe um esclarecimento. Uma coisa é fazer um telejornal de quase uma hora em São Paulo, onde, a toda hora, tem algo acontecendo. Outra, bem diferente, é cumprir a mesma missão numa região como o sul de Minas. A região está entre as mais belas do planeta. A todo momento você fica diante da visão da infinita beleza. E os personagens são os mais espetaculares. Mas só isso não basta para fazer um telejornal. É preciso o factual. E lá, amigos de bar, o tempo passa devagarzinho, quase parando. Por isso, as equipes da noite tinham que fazer matérias sobre exposições de quadros, festas, jantares, palestras, reuniões políticas e, claro, shows de música. E depois de quase um mês na rádio-escuta, fui premiado com uma matéria em Itajubá. Para cobrir um show de Caetano Veloso. Como das outras vezes, a matéria caiu no meu colo de repente. Mas, antes, deu tempo de ligar para meu contato em Itajubá. Depois de tanto tempo, não me lembro mais o nome do cara, mas ele me deu a maior força. E disse o seguinte: 'Raul, sei o hotel onde o Caetano está. Vou te passar o endereço e você faz o seguinte: vem mais cedo pra Itajubá, passa no hotel antes do show e grava a entrevista com ele. Aí depois, no show, você faz só as imagens e pronto!" Maravilha. Tudo resolvido. Anotei o endereço e lá fomos nós. Meu cinegrafista se chamava Amadeu Canalonga. Ele era muito figura. Parecia um buldog. Tinha uma cara de enfezado que dava até medo.  Mas tinha um coração enorme. Chegamos em Itajubá e fomos direto para o hotel. Na recepção, perguntei pelo Caetano e disseram que ele estava na sala de jantar. Fomos pra lá com tudo pronto. Câmera, luz, microfone. Eu pensava o seguinte: 'Caetano Veloso é o maior gente boa da MPB. Ele vai ficar feliz em nos dar uma entrevista'. Quando chegamos no restaurante, Caetano estava jantando. Na mesa, só ele e um outro cara, com uma cabeleira imensa. O Amadeu dizia: 'Vai lá. Aproveita agora. Pega o homem enquanto ele está aqui.' E eu: - 'Cê tá louco! De jeito nenhum. Ele está jantando. Assim que ele terminar, eu vou.' Dito e feito. Quando Caetano pousou os talheres e pegou o guardanapo, lá fui eu, na esperança de que o mundo ficasse odara. Me agachei ao lado da cadeira dele e comecei a falar. Fui direto. Na veia. 'Oi, Caetano. Tudo bão ? Já jantou ?' E ele, sem entender nada, só concordou com a cabeça, enquanto limpava a boca com o guardanapo. - 'Então... eu estava esperando você terminar de comer pra vir te pedir uma coisa. É que sou reporter da tv sul de Minas e queria ver se você podia gravar uma entrevista com a gente aqui no hotel, antes do show. O que você acha ?' Ah, pra que falei isso! O cara que estava jantando com ele, o da cabeleira, teve um chilique na hora. -'Mas que petulância! Como tu se atreeeve ??? Não vê que estamos jantando ?? Caetano está cansado, está concentrado e tu vem perturbar nossa paz ?' Acho que ele era agente do Caetano. E não estava mesmo afim de colaborar.   Mas respondi na boa: -'Não, mas eu esperei vocês terminarem pra vir aqui. Faz tempo que chegamos.' E me virando para o Caetano, arrematei: 'Caetano, esta é a primeira vez que saio pra rua pra fazer uma reportagem. Se eu não conseguir uma entrevista com você, acho que não vou ter mais nenhuma chance. Por favor...' Não deu tempo de completar. O suposto agente se levantou, me deixando sem lenço e sem documento, pegou Caetano pelo braço e já foi saindo: - 'Ah, meu Deus!!! Que impertinência! Vamos Caetano, vou reclamar na recepção. Imagine!' Mas se virou pra mim e disse -' E tu, meu rei, se quiser, vai no camarim depois do show que ele fala com tu'. ´Fala mesmo ??' Tá combinado ??' Ele me olhou por cima do ombro, não disse nada e saiu ao lado de Caetano. Voltei animado, contei pro Amadeu o acontecido e combinamos de ir direto para o ginásio onde aconteceria o show. Quando chegamos lá, o ginásio já estava lotado. E ainda faltava muito para o show. No céu, uma meia lua inteira por certo iluminou meus passos. Porque olha só a coincidência. Dei de cara com o meu contato da rádio-escuta. Na verdade, ele me encontrou porque a gente não se conhecia pessoalmente. Mas se hoje é fácil identificar uma equipe de televisão na rua, imagine naquela época. Além do repórter e cinegrafista, ainda tinha o cara que carregava o vt (um trambolho imenso e pesado) e outro que fazia a iluminação. E equipes de televisão eram coisa rara naqueles tempos. Quando nos encontramos foi uma festa. Eu estava animado pela expectativa de entrevistar Caetano. E ele estava animado porque pensava que eu já tinha entrevistado Caetano. Quando falei o que tinha acontecido ele me disse o seguinte: 'Raul, trabalho em rádio aqui em Itajubá. E esses caras não falam depois do show nem a pau. Eles saem do ginásio e vão direto pro hotel. Isso quando não vão direto para o aeroporto.' - 'Vixe! E agora ? Dancei ?' Olha se voce quiser, te coloco no camarim do Caetano, antes do show. Conheço o segurança que fica na porta e é so pedir. Quer ? ' Claro' E fomos pra lá. O camarim tinha sido improvisado num dos vestiários do ginásio. Era um espaço bem grande e entramos ali dentro numa boa. Comemos alguns salgadinhos que estavam numa mesa grande e ficamos num canto, esperando pela chegada de Caetano. O tempo passou, mais e mais pessoas foram chegando, menos ele. E toda a equipe ali, num cantinho mais escuro, de pé, esperando. Nem vi por onde Caetano entrou. Quando percebi, ele estava bem no meio do vestiário-camarim. Vestia uma roupa larga e colorida e andava em circulos, como se estivesse orando. Estava se concentrando para o show. E o ginásio já estava apinhado de gente esperando por ele. Sabe aquelas horas que você se pergunta 'o que estou fazendo aqui ?' Pois é. Mas nem deu tempo de pensar muito. Só escutei um grito e quando vi aquele agente estava ao nosso lado, e não estava nada feliz com nossa presença. E de repente o caos estava formado. Enquanto ele gritava, eu tentava pedir desculpas e achar a porta da saída. Nisso, quem aparece bem na minha frente ?? Caetano Veloso. Ele me olhou candidamente e disse: 'Menino, mas você é persistente mesmo, hein ? Vai, arruma aí o microfone e faz a entrevista que você quer então.' Só ouvi o grito do Amadeu. 'Acende a luz e bate o branco pra mim!!! (bater o branco é balancear a câmera). Em seguida, disse: 'É teu, Raul!!!' Amigos de bar, foi quando me bateu o maior branco da vida. Estava no camarim, com o microfone na mão, Caetano diante de mim, sorrindo, e eu procurava na mente alguma coisa para perguntar e não achava. Amadeu repetiu 'Vai Raul, é teu, vai!' Fiz quatro perguntas. Todas, absolutamente sem noção. Perguntei o que ele achava de estar fazendo um show no sul de Minas. E Caetano disse que era bom demais, que as montanhas eram inspiradoras, que estar na terra de Drummond e Milton já era, em si, uma poesia. Perguntei porque fazia poucos shows em Minas, e ele respondeu o óbvio ululante 'eu venho com o maior prazer, mas tenho que ser convidado, né ?' mas se estendeu falando mais sobre Minas, sobre os mineiros, as montanhas, os doces e a poesia. Parecia que ele queria mesmo falar. Fiz mais duas perguntas absolutamente idiotas e ele respondeu na maior boa vontade. Depois se despediu e ainda disse, candidamente: 'Conseguiu, né ? Boa sorte na sua carreira'. O agente de Caetano, que olhava com espanto, finalmente se deu por vencido e saiu para organizar novamente o camarim. O show já ia começar. Quando saímos, Amadeu estava furioso. 'Raul, não acredito! Que perguntas foram aquelas que você fez pro Caetano ?' Eu sabia do que ele falava. Podia ter perguntado para Caetano sobre política! Estavamos em plena corrida eleitoral, tanto que Caetano, engajadíssimo, abria os shows dele cantando 'Lula-lá, brilha uma estrela...' Mas não! Perguntei o que ele achava de cantar em Minas. Podia ter perguntado sobre o próximo projeto dele. Mas não! Perguntei porque ele não cantava mais vezes em Minas. Estava envergonhado. Quase pedi pro Amadeu apagar tudo. Mas deixei passar. Fizemos imagens do show, entrevistei alguns fãs e voltamos para Varginha. Gravei um texto curto, chamando pelo show, pela expectativa das pessoas e encerrando com um clipezinho dele cantando. Deixei as fitas na mesa da editora e fui pra casa dormir. No dia seguinte, só iria para a redação à tarde. E fiquei esperando a matéria no jornal do meio-dia. Logo na escalada veio a manchete: 'Caetano canta e fala em Itajubá'.  'Canta e fala ??', pensei comigo. 'Que chamada mais sem noção!'  Mas a matéria encerrou o jornal. E me lembro da cabeça, chamando o vt. Era mais ou menos assim: "Caetano Veloso fez um show histórico ontem a noite em Itajubá. Cantou os principais sucessos da carreira. E deu uma entrevista exclusiva ao repórter Raul Dias Filho, rompendo um silêncio que já durava cinco anos." A entrevista foi exibida tambem no Jornal Hoje. Foi só uma fala rápida do Caetano, sem qualquer citação à autoria da entrevista. Mas destacando que, depois de cinco anos de silêncio, ele tinha feito as pazes com a imprensa. Quando cheguei na redação, à tarde, fui festejado por todos. Disseram que fui esperto ao evitar assuntos políticos já que a emissora, afiliada da Globo, então empenhadíssima para a eleição de Collor, jamais colocaria no ar qualquer manifestação pró-Lula. E que, a partir do dia seguinte, iria definitivamente para as ruas. O primeiro 'furo' foi totalmente casual. Mas me ensinou que, no jornalismo, a persistência é companheira da realização. E que a sorte só sorri para quem corre atrás dela.   

Infelizmente, foi a primeira e última vez que entrevistei Caetano. Minha carreira tomou um rumo diferente, onde entrevistas com poetas ficaram raras. Até porque, para os telejornais diários, entrevistas assim se tornaram descartáveis. Caetano e outros ficaram restritos aos programas de fofocas. É uma pena. Doses diárias de Caetano fariam bem para todo mundo. Gostaria muito de entrevista-lo novamente. Talvez, até,  para repetir as mesmas perguntas inocentes daquela época. 

6 comentários:

  1. Raul,

    Parabéns pela matéria postada! É muito interessante a forma como você coloca a "pitada"de humor.É muito bem feita. Você tem toda razão, pois acho que a televisão seria muito mais interessante se tivéssemos educadores, poetas, músicos e escritores concedendo entrevistas com mais frequência. Há muita gente falando coisa inútil.

    Abraço,

    Valéria

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  2. Raul, você é mesmo fantástico. Opa! quer dizer, espetacular. O que você faz, contar a todos um pouco de sua experiência é o máximo. Estou adorando, e me divertindo muito!!! A forma como você narra é incrível, faz com que me sinta presenciando o fato. Você escreve de forma simples,clara , objetiva e consegue nos passar emoção. Parabéns, como você devem existir poucos.
    Beijo, Luciane- RJ

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  3. Oi Raul, tudo bem?

    Que bom que a sua carreira tomou outro rumo. Suas reportagens são como abrir um livro de poesias e nele poder viajar. Os lugares, a cultura dos povos.Tudo isso nos preenche. Parabéns pela brilhante trajetória.
    Que Jesus o envolva sempre com muita luz!

    Elisabete - Sorocaba

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  4. Duas observações:
    1) O buldog era o cachorro preferido do papai... ele sempre quis ter um
    2) Não acredito em coinscidências ou sorte. Sei que as orações da nossa mãe sempre nos ajudou... o seu "branco" deve ter sido, sim, uma grande bênção!
    3) que orgulho tenho de você!
    Beijo no coração!

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  5. Parabéns,Raul!
    Moro em uma comunidade do Rio de Janeiro e eu e minha família acompanhamos sempre as suas reportagens no Domingo Espetacular. Assistimos muitas vezes só para ver suas reportagens e admiramos muito a maneira como voce consegue sempre colocar um pouco de emoção em todas. Não tenho vergonha de dizer que chorei junto com voce quando entrou na floresta, naquele acidente do avião. Parabéns, em meu nome e de minha família.

    José de Arimatéia - Comunidade Andorinha - São João do Meriti

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  6. Oi Raul!
    Estou aqui exausta, após um dia de trabalho, tentando como voce mesmo disse "correr" atràs da sorte porque vi um esboço de sorriso pro meu lado.. e ela acabou me trazendo a um lugar distante e quente. Preciso descansar!! e continuo lendo seu blog sem parar!!
    Procuro não ser repetitiva em meus comentàrios. Não quero superestimar ninguém, mas seu post é irresistivel, difícil ler sem querer te falar algo..
    Acho que a sua simplicidade, juntamente com sua clareza, misturada a sua doçura e com algumas pitadas de seu humor compõe textos deliciosos de se saborear.
    Não são cansativos e a gente termina com aquela agradàvel sensação de prazer apòs uma boa leitura.
    Obrigada!!
    Um beijo
    Regiane

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