quarta-feira, 5 de maio de 2010

A segunda é sempre melhor

Um dia depois da 'entrevista' com o governador mineiro, lá estava eu na redação, por volta das cinco da tarde, esperando a pauta do dia. Ou melhor, da noite, já que o horário noturno normalmente é reservado aos 'focas', como são chamados os iniciantes da profissão. Desta vez nem foi preciso recomendações. A pauta era simples: uma exposição de peças encontradas em antigas aldeias indígenas da região. Por coincidência, de novo em Pouso Alegre. Como todo cabaço que se preza, judiei do cinegrafista. Pedi que fizesse imagens de quase todas as peças. E preparei um texto antológico, que daria uma reportagem de uns oito minutos, analisando o passado, presente e futuro das comunidades indígenas no Brasil. Além de suas intrínsecas relações com o artesanato. A coordenadora da exposição estava animada, talvez prevendo que, dado o entusiasmo do repórter, aquela matéria seria destaque no Fantástico ou Jornal Nacional. Sei que ficamos quase quatro horas gravando. O balde de água fria veio logo na saida, quando o cinegrafista, naturalmente emputecido, resmungou com o auxiliar: 'quatro horas de gravação para uma materinha que vai render 30 segundos no jornal'.
- 'Como assim ?', perguntei. 'você não percebeu que existe uma história incrível por trás de todo aquele artesanato ?'
Ele foi objetivo, prático e demolidor:
- 'Raul, em televisão você não conta história mostrando pecinhas de barro. Você conta mostrando e entrevistando personagens'.  E arrematou, meio que ignorando meus argumentos: 'vamos passar em algum restaurante para comer, porque vamos chegar em Varginha só de madrugada.'
Seguimos em silêncio no carro até um restaurante que, se não me falha a memória, se chamava Degrau. Naquela altura do campeonato, havia poucos clientes ali. E foi impossível ignorar o furdúncio numa mesa dos fundos. Pelo barulho, gargalhadas e, principalmente, pela aparência das figuras. Na mesa, além de várias outras pessoas, estavam Baby Consuelo e Thomaz Green Morton. Ela, uma das maiores cantoras brasileiras, totalmente sem pecado e sem juízo, tinha acabado de se separar de Pepeu Gomes. E Thomaz estava no auge. Era conhecido em todo o Brasil e até no exterior como um paranormal capaz de produzir luzes, entortar talheres e fazer perfume brotar das mãos. Estes poderes misteriosos teriam surgido depois dele ter sido atingido por um raio enquanto pescava. O guru do 'rá' atraía uma legião de seguidores para seu sítio, em Pouso Alegre. Inclusive personalidades como Elba Ramalho, Ivo Pitanguy e Gal Costa. Na época, Thomaz cobrava até 20 mil dólares para supostos tratamentos de energização. Realmente, era um cara muito estranho aquele Thomaz. Usava barba e cabelos compridos, vestia uma bata colorida e tinha, bem no meio da testa, uma protuberância meio azulada, que ele dizia ser o 'terceiro olho'. O fato é que, naquela noite, ele e Baby estavam chapados. Já tinham bebido rios de cerveja e whisky. Me lembro que era mês de dezembro. Então pensei: 'vou entrevistar o Thomaz e pedir pra ele fazer algumas previsões para o ano que vem'. Seria perfeito! Quando disse isso ao cinegrafista, ele quis morrer. Já tinha trabalhado mais do que o suficiente para uma simples exposição e agora teria que interromper o jantar pra gravar com um guru ?? Não mesmo! Amigos de bar, deu o que fazer pra convencê-lo. Na verdade, tive que pagar a metade da conta. E lá fui eu para a mesa de Thomaz e Baby. Quando cheguei fui direto pra ele:
"- Olá, Thomaz, tudo bem ? Meu nome é Raul, sou repórter da TV Sul de Minas e gostaria de gravar uma entrevista, pra que você faça algumas previsoes para o ano que vem...'
Ele olhou demoradamente em meus olhos, muito sério. De repente estendeu a mão direita espalmada em minha direção e gritou pra Pouso Alegre inteira ouvir:
'- Ráááááááááááááááá!!!!!!!!!!!!'
Juro que quase caí de costas com o susto que levei. Ainda mais que a mesa inteira, Baby inclusive, acompanharam o guru no grito e repetiram, todos com a mão espalmada em minha direção:
-'Rááááááááááááááá!!!!!!'
Eu ergui a mão e respondi, num sussurro:
- 'rá...'
Foi bom porque quebrou o gelo. Thomaz deu uma gargalhada e puxou uma cadeira pra eu sentar. Aí ficou meia hora falando. Disse que não poderia gravar entrevista porque tinha um contrato exclusivo com uma emissora suíça e tambem porque as previsões que ele tinha eram bombásticas demais e iriam assustar o mundo. Enfim, uma historia sem pé nem cabeça mas que deixaram aquele jovem repórter impressionadíssimo. Ainda tentei convencê-lo, mas não teve jeito. Foi então que o proprio Thomaz sugeriu:
'- Porque você não grava com minha amiga Baby ? Ela acabou de se separar, está gravando um novo disco e tem muita coisa pra falar.'
Me virei pra Baby e falei:
- 'Ok ? Pode ser ? Você grava comigo ?
- Claro! Vamulá!!! Arma o circo ali e me chama quando estiver pronto.'
A equipe, que ainda estava terminando o jantar, ficou irada, claro. Tiveram que buscar câmera, iluminação, microfones, vt, enfim, uma parafernália de equipamentos. Mas depois de tudo pronto, gravei uma senhora entrevista com Baby. Ela falou sobre o começo da carreira, da formação do grupo 'Novos Baianos', do fim do casamento com Pepeu, da fase cósmica e telúrica, dos filhos (estava grávida na epoca) e da música popular brasileira. Quando me despedi, já de madrugada, Thomaz Green Morton se virou novamente pra mim e repetiu:
'-Rááááááááááááááá....uuuuul!!'
Todos deram risadas, agradeci novamente e pegamos estrada. Depois, fiquei uma semana com o corpo todo impregnado por um perfume adocicado que ele, sei lá como, exalou sobre mim. No dia seguinte, como o cinegrafista tinha previsto, a matéria sobre a exposição foi exibida com exatos 30 segundos de duração. Já a entrevista com Baby mereceu uma edição especial e foi ao ar no telejornal de sábado, com quase seis minutos de duração. Como não tinha feito nenhum contraplano, não apareceu nenhuma pergunta minha. (O contraplano é quando o reporter, depois da entrevista, repete todas as perguntas de frente para a câmera. É um recurso usado quando gravamos com apenas um cinegrafista. Depois, na edição, fica parecendo que a entrevista foi gravada com duas câmeras). Mas no final da entrevista apareceu o crédito 'reportagem - Raul Dias Filho'. E ainda recebi muitos elogios da diretoria de jornalismo por ter tido a iniciativa de fazer uma matéria que não estava na pauta. Foi uma sensação extraordinária. Que se repetiria, dias depois, ao gravar com um dos maiores nomes da história da MPB. O primeiro grande 'furo' da minha carreira. E totalmente casual. Mas isto, eu conto depois.

Alguns anos depois desta entrevista, Baby Consuelo, nascida Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, passou a assinar Baby do Brasil. Ela teve seis filhos (Sarah Sheeva, Zabelê, Nãnashara, Pedro Baby, Krishna Baby e Kriptus Rá Baby) e hoje se define como 'popstora'. É popstar e pastora do "Ministério do Espírito Santo de Deus em Nome de Jesus", fundado por ela mesma.

Thomaz Green Morton foi desmascarado, em rede nacional, através de uma reportagem exibida no Fantástico. Mas até hoje ele mantem admiradores que acreditam piamente em seus poderes. Thomaz está milionário e se dedica, atualmente, a plantar milhares de bananeiras no sítio que ainda possui em Pouso Alegre, além de entortar alguns talheres de vez em quando.





7 comentários:

  1. Ráááááááááááááá...uuuuul!!!! rsrsrs... Muito legal as histórias do início da sua carreira! Tô adorando e espero que conte sempre mais. Imposível ler seus posts e não meter a colher! Pra variar, você escreve de forma tão real que dá pra sentir o famoso friozinho na barriga, que antecede toda primeira vez... e às vezes a segunda também...
    Hoje, você está no topo por merecimento e competência e sua simplicidade, humildade e verdade nos fazem ficar babando ovo aqui neste espaço. É por estas e outras que sou sua fã n° zero!
    Bjo grande!

    Cássia - Viçosa/MG

    ResponderExcluir
  2. Oi Raul! Esse tal de Thomaz Green Morton, que se dizia paranormal não passa de um charlatão, um tremendo" picareta ", que usou da boa fé do povo para enriquecer. Ele inclusive "plagiou" o nome de um importante personagem da história da medicina moderna.
    Thomaz Green Morton, o verdadeiro, para quem não sabe, foi um médico cirurgião que viveu na Europa no século dezenove e notabilizou-se por ser o primeiro a realizar um procedimento cirúrgico com o uso de um agente anestésico em 1842.
    Thomaz Green Morton, o falso, vivia de enganar a quem lhe procurava, inclusive a própria Baby, hoje do Brasil, que deve ter perdido muito dinheiro com esse camarada. Coitada ! ela também caiu na lábia do pilantra.
    Por falar na Baby, não tenho nada contra lela, mas sempre a achei estranha, dona de um estilo, digamos, diferente ( vide os nomes de seus filhos).
    Quanto ao repórter, esse dispensa comentários...
    Raul, acho o máximo você dividir conosco um pouco de suas experiências,mostrar que também teve dificuldades, como qualquer iniciante,mas que deve ter batalhado muito para chegar onde chegou. Um beijo, Luciane - RJ

    ResponderExcluir
  3. Raul,

    Parabéns pela matéria!

    Você escreve sempre de uma maneira simples, porem com muito profissionalismo e eficiência.

    Aguardemos a continuação!

    Lívia

    ResponderExcluir
  4. Olá Raul, bom dia!
    Suas histórias de começo de carreira são incríveis. Sou estudante do quarto ano de Jornalismo, e assim como você sonhava, desejo, quem sabe em breve, escrever para um grande veículo impresso. Não consigo escolher entre os jornais ou revistas, afinal, cada um tem seu charme específico, e eu adoro ambos, embora sejam bem distintos (mas, na essência, é tudo jornalismo).

    Mas o fato que me levou a fazer esse comentário, na verdade, foi a sua palestra ministrada na PUC Campinas ontem (dia 19). Muito mais do que uma palestra, Raul, eu encarei como uma verdadeira aula de jornalismo. Como você mesmo disse durante o bate-papo, é tímido e nunca teve grandes pretensões na TV... Me vi muito em você, e pode ter certeza, que você é um espelho de profissional, íntegro, humilde, e que leva a sério tudo o que faz.

    Para não me alongar muito, deixo aqui um abraço e votos de sucesso! Além disso, se tiver um tempinho sobrando, pediria que você acessasse o meu blog, onde escrevo sobre "de tudo um pouco"... emoções, vivências, opiniões... Ficaria honrado com a sua visita! o endereço é http://naudepensamentos.blogspot.com

    Grande abraço!!!

    ResponderExcluir
  5. RÁAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAACHA FORA!!!!! KKKKKK

    ResponderExcluir
  6. Raul
    eu admiro seu trabalho, sobre tudo o seu desprendiento e respeito a condiçao social das pessoas. me faz bem saber que seu otimo nivel cultural e intelectual lhe faz parecer uma pessoa da melhor qualidadade.
    shey

    ResponderExcluir
  7. Olá Raul,
    Tudo bem?

    Não consegui seu contato de outra forma...
    Meu nome é Rafael Saar, atualmente estou dirigindo um documentário sobre a cantora Baby do Brasil e começamos gravando seus shows recentes, e seguimos com cultos, entrevistas, etc.
    Também estamos reunindo e catalogando o acervo de vídeos e áudios dela.
    Como eu conseguiria essas imagens que devem ser fantásticas?? Você possui cópia disso?

    Aqui vai um link de uma matéria feita esse mês no Hoje em Dia, da Record, que fala de nosso filme.
    http://www.youtube.com/watch?v=FVnFCEk_x5g

    Aguardo sua resposta

    Abraços!
    Rafael
    rafaelsaar@gmail.com

    ResponderExcluir